Um mistério que há quase meio século persiste
sem explicação na neurociência pode ter sido esclarecido agora por um grupo de
pesquisadores brasileiros e ingleses. Pessoas que nascem sem um importante
feixe de fibras nervosas que conecta os dois hemisférios cerebrais, o corpo
caloso, em princípio teriam dificuldade em associar o aprendizado e a memória
armazenados em lados opostos do cérebro. Acontece que o cérebro de algumas
delas parece preservar essa habilidade, um paradoxo bastante conhecido dos
neurocientistas, mas nunca devidamente esclarecido.
http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/06/16/ponte-entre-hemisferios/
Em um artigo publicado em maio na
revista PNAS, da Academia de Ciências dos Estados Unidos, os pesquisadores
relatam uma possível explicação para esse antigo quebra-cabeça. Eles
verificaram que o cérebro de pessoas que nascem sem o corpo caloso parece ser
capaz de criar rotas alternativas e garantir a comunicação entre os dois
hemisférios cerebrais. No estudo, coordenado pelos médicos Fernanda Tovar-Moll
e Roberto Lent, ambos do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOr) e do
Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), o grupo identificou e descreveu morfologicamente esses novos caminhos,
que parecem compensar a ausência dessa importante estrutura cerebral.
Situado na região central do cérebro, o corpo
caloso funciona como uma ponte conectando os hemisférios direito e esquerdo por
meio de 200 milhões de fibras nervosas. Ainda nos anos 1960, pesquisadores
verificaram que a remoção cirúrgica do corpo caloso — procedimento conhecido
como calosotomia — prejudicava a capacidade das pessoas de perceber e
interpretar o mundo. Eles constataram que a comunicação entre os dois
hemisférios era seriamente comprometida nas pessoas em que essa estrutura havia
sido retirada cirurgicamente para tratamento de distúrbios neurológicos, como a
epilepsia. Por ser considerada um procedimento paliativo, e não curativo, além
de bastante agressivo e invasivo, a calosotomia era e ainda é usada apenas em
casos muito específicos. “Acreditava-se que a remoção do corpo caloso
impediria, no caso da epilepsia, que as conexões neuronais que não funcionam
adequadamente e desencadeiam as convulsões se espalhassem para neurônios do
hemisfério vizinho”, explica Fernanda.
Nos casos cirúrgicos, a remoção desse conjunto
de fibras pode ser completa. O procedimento interrompe a troca de informações
entre os dois hemisférios cerebrais, desencadeando a síndrome de desconexão
inter-hemisférica. A pessoa cujo corpo caloso é completamente retirado por meio
de cirurgia pode se tornar incapaz de dizer o nome de um objeto caso, vendada,
o apanhe com a mão esquerda. Isso porque o reconhecimento tátil dessa mão é
processado pelo hemisfério direito do cérebro, enquanto a fala é controlada
pelo hemisfério esquerdo. E, para perceber um objeto e dizer seu nome, é
preciso que os dois hemisférios troquem informações entre si. Segundo Fernanda,
o que explica essa incapacidade no caso dessas pessoas é o fato de o sinal não
conseguir passar do lado direito para o esquerdo por conta da ausência dessa
ponte.
Mas há tempos também se sabe que o mesmo não
acontece com quem nasce sem essa estrutura cerebral. Em 1968, o neurocientista
Roger Sperry, prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1981, verificou que
pessoas que nascem sem o corpo caloso são capazes de reconhecer e dizer o nome
de qualquer objeto, independentemente da mão com a qual o seguram. Essa
constatação, também conhecida como paradoxo de Sperry, deixava os
neurocientistas intrigados, porque não se sabia ao certo como um hemisfério se
comunicava com o outro na ausência do corpo caloso.
Problemas de formação
No estudo da PNAS, Fernanda e seus colaboradores avaliaram seis pessoas de ambos os sexos com idade entre seis e 33 anos e problemas na formação do corpo caloso que variavam de sua ausência completa (agenesia) até o desenvolvimento de um corpo caloso atrofiado. Dos voluntários que participaram do estudo, dois não tinham o corpo caloso; dois o tinham em tamanho menor que o normal (hipoplasia); e outros dois apresentavam apenas partes da estrutura formada (disgenesia parcial). Ao realizarem testes de reconhecimento tátil e visual, os pesquisadores verificaram que a comunicação entre os dois hemisférios do cérebro das pessoas que nasceram sem o corpo caloso ou com apenas parte dele era praticamente igual à observada em um grupo de controle, composto por pessoas com cérebros saudáveis.
No estudo da PNAS, Fernanda e seus colaboradores avaliaram seis pessoas de ambos os sexos com idade entre seis e 33 anos e problemas na formação do corpo caloso que variavam de sua ausência completa (agenesia) até o desenvolvimento de um corpo caloso atrofiado. Dos voluntários que participaram do estudo, dois não tinham o corpo caloso; dois o tinham em tamanho menor que o normal (hipoplasia); e outros dois apresentavam apenas partes da estrutura formada (disgenesia parcial). Ao realizarem testes de reconhecimento tátil e visual, os pesquisadores verificaram que a comunicação entre os dois hemisférios do cérebro das pessoas que nasceram sem o corpo caloso ou com apenas parte dele era praticamente igual à observada em um grupo de controle, composto por pessoas com cérebros saudáveis.
Na tentativa de entender melhor como o cérebro
dos dois grupos funcionava de modo semelhante, os pesquisadores mapearam seus
cérebros por meio de técnicas de ressonância magnética estrutural (RM) que
permitem visualizar as conexões neurais e técnicas de ressonância magnética
funcional (RMf), que mede a atividade cerebral a partir de variações no fluxo
sanguíneo regional. O grupo observou que, diferentemente do cérebro das pessoas
saudáveis e de pacientes que
tiveram o corpo caloso retirado em cirurgia, os cérebros das pessoas que não
tinham o corpo caloso ou que o tinham malformado apresentavam vias nervosas
alternativas ligando os dois hemisférios, possivelmente desde o nascimento.
“Identificamos em pessoas que haviam nascido sem o corpo caloso, e também nas
que o tinham parcialmente formado, um conjunto de fibras nervosas formando
feixes compactos que conectam regiões responsáveis pela transferência de
informações táteis entre os dois hemisférios”, relata Fernanda. Seriam duas as
rotas alternativas de comunicação entre os hemisférios cerebrais. Segundo a
médica, elas ligam, bilateralmente, a região do córtex parietal posterior, área
relacionada ao reconhecimento tátil.
O grupo acredita que esses circuitos cerebrais
alternativos, no caso das pessoas que nascem sem o corpo caloso, são gerados
durante o desenvolvimento embrionário – entre a 12ª e a 20ª semana de gestação
–, quando a plasticidade anatômica do cérebro é alta e capaz de desviar o
crescimento dos axônios, a parte do neurônio responsável pela condução de
impulsos elétricos de uma célula para outra. A essa capacidade do cérebro de
reconectar áreas distantes, os neurocientistas se referem como plasticidade de
longa distância. Os pesquisadores ainda não sabem se o cérebro de todos aqueles
que nascem sem o corpo caloso desenvolve essas rotas alternativas. Mas o fato
de as terem observado em alguns casos já indica que é possível. Por enquanto,
os resultados obtidos pelo grupo de Fernanda e Lent não só esclarecem esse
antigo paradoxo como também sugerem que mesmo as longas ligações formadas no
cérebro durante seu desenvolvimento podem ser modificadas, provavelmente em
resposta a fatores ambientais ou genéticos, abrindo caminho para uma melhor
compreensão de uma série de doenças humanas resultantes de conexões neuronais
anormais formadas durante o desenvolvimento intrauterino.
Artigo científico
TOVAR-MOLL, F. et al. Structural and functional brain rewiring clarifies preserved inter-hemispheric transfer in humans born without the corpus callosum. PNAS. mai. 2014.
TOVAR-MOLL, F. et al. Structural and functional brain rewiring clarifies preserved inter-hemispheric transfer in humans born without the corpus callosum. PNAS. mai. 2014.