A geneticista Mary-Claire King. / WORLD SCIENCE FESTIVAL
A cientista que identificou os genes do
tipo de tumor reflete sobre o papel da genética
Nunca existiu uma carreira científica
parecida com a de Mary-Claire King. Há anos, em sua tese de doutorado, ela
chegou à conclusão de que os humanos e os chimpanzés são, do ponto de vista
genético, 99% idênticos (uma ideia revolucionária). Seu posterior trabalho
sobre cânceres humanos teve como consequência a descoberta do chamado gene do
câncer de mama, BRCA1, que transformou o diagnóstico e o tratamento desta
doença.
Além de suas pesquisas científicas
tradicionais, King criou testes genéticos que ajudam a determinar a identidade
das vítimas da violência policial em lugares como Ruanda e El Salvador. E tudo
isso ao mesmo tempo em que era mãe solteira e criava a filha.
King, de 68 anos, trabalha agora como
geneticista na Universidade de Washington. Falamos com ela em Nova York, depois
de receber o prestigioso prêmio Lasker. Abaixo, apresentamos uma versão
condensada e editada dessa entrevista.
Pergunta. Como a senhora começou a
estudar os aspectos genéticos do câncer de mama?
Resposta. De maneira indireta. No
final da década de 1960, estudava estatística na Universidade de Berkeley. E lá
fiz um curso de genética, me apaixonei pela disciplina, mudei de especialidade
e nunca olhei para trás. Logo após terminar o doutorado, fui ao Chile para dar
aulas, mas o golpe militar de setembro de 1973 pôs fim a esse projeto. Alguns
dos meus estudantes não sobreviveram. Deixei o país pouco depois. No começo de
1974, já outra vez na área da baía de San Francisco, buscava trabalho e tive a
sorte de que me oferecessem um na Universidade da Califórnia, para estudar o
câncer de mama. Claro que o câncer de mama não era minha especialidade. Mas
pensei que a genética, a biologia evolutiva e a estatística poderiam fornecer
algo à guerra contra o câncer que acabava de começar. E minha melhor amiga de
infância tinha morrido de câncer. Queria tentar.
P. Na década de 1970, qual era a
teoria predominante sobre as causas do câncer de mama?
R. A teoria predominante era a de
que o câncer era viral. Eu pensava que a herança genética tinha que
influenciar, pelo menos em algumas famílias. Para minha sorte, o Instituto
Nacional do Câncer estava estudando os anticoncepcionais orais e entrevistando
1.500 mulheres com câncer de mama. Perguntei se podiam acrescentar ao estudo
algumas perguntas sobre os antecedentes familiares: as pacientes têm parentes
mulheres próximas com câncer de mama? E com câncer de ovário?
Depois adicionei uma pergunta
estatística: “Os casos de câncer se concentram em certas famílias mais do que o
normal para supor que aparecem por acaso?”. A resposta foi sim. De todas as
explicações possíveis, a mais provável do ponto de vista estatístico era que um
gene com mutações fosse o responsável pelo câncer de mama em, aproximadamente,
4 % dos casos.
Mas o gene era uma hipótese. A melhor
maneira de demonstrar que ele existia era encontrá-lo. Em 1990, meu grupo
publicou a prova de que o gene, que chamamos de BRCA1, ficava no cromossomo
humano 17. O artigo marcou o início de uma corrida para clonar o gene, em
laboratórios públicos e privados, entre eles o meu.
P. Após clonar o gene, o Myriad
Genetics conseguiu uma patente sobre ele. Como a senhora se sentiu?
R. Eu me senti extremamente
aliviada quando o BRCA1 foi clonado. Isso significava que podíamos continuar a
tentar compreender como as mutações nele provocavam o câncer de mama. Mas,
durante os meses seguintes, o assunto da patente se transformou em um autêntico
problema. O Myriad exigia o uso exclusivo do BRCA1.
As patentes genéticas anteriores tinham
obtido permissões não exclusivas e não tinham alterado a forma de usar os genes
em pesquisas e diagnósticos. Mas o teste oferecido pelo Myriad custava mais de
3.000 dólares (cerca de 8.500 reais) e só havia um lugar no qual podia ser
feito. O seguro médico de muitas mulheres não cobria o teste, e era muito caro
para que elas pudessem custeá-lo por conta própria.
P. A exclusividade da patente foi
um obstáculo para as pesquisas?
R. Houve um momento em que recebi
uma carta de requerimento do departamento legal do Myriad pedindo que eu
deixasse de estudar o BRCA1. Nessa época, meu laboratório ficava na
Universidade de Washington, em Seattle. O escritório de nosso procurador-geral
do Estado escreveu à empresa dizendo que eu trabalhava nesse campo desde 1974,
que coordenava uma pesquisa financiada por fundos públicos e que não estava
comercializando nenhuma prova (nem nada parecido). O escritório do
procurador-geral também disse que me representaria se a empresa insistisse. Não
voltei a saber mais nada sobre o assunto.
P. Como a senhora se sentiu quando,
em 2013, o Tribunal Supremo decidiu…
R. Acabar com a patente? Eu me
senti ótima! Os nove membros do tribunal decidiram, por unanimidade, que os
genes eram produtos naturais e que não podiam ser patenteados. Desde então, os
testes são oferecidos em uma variedade muito maior de lugares e o preço se
reduziu de maneira considerável.
P. Há pouco tempo, a senhora
publicou um artigo na revista médicaJAMA, no qual propõe que todas as
mulheres com mais de 30 anos façam esse teste genético.
R. Acho que os testes do BRCA1 e do
BRCA2 devem ser oferecidos a todas as mulheres com cerca de 30 anos de idade,
como parte do atendimento médico rotineiro. Quase a metade das mulheres que
herdam mutações no BRCA1 ou no BRCA2 não tem históricos de câncer de mama ou
ovário na família, e não têm nem ideia de que são portadoras de mutações que
causam câncer.
A maioria dos cânceres de mama e ovário
hereditários pode ser prevenida, se aquelas que têm a mutação souberem disso.
Mas está claro que a solução não é agradável. É preciso extirpar os ovários e
os trompas de Falópio por volta dos 40 anos, para eliminar quase todo o risco
de desenvolver o câncer de ovário e reduzir aproximadamente pela metade o de
ter câncer de mama. Algumas mulheres optam também por uma mastectomia
preventiva para diminuir o risco de câncer de mama quase a zero.
P. A senhora ajudou na
implementação de testes genéticos para reparar violações dos direitos humanos.
R. Em 1983, um grupo de mulheres
argentinas me contratou — as Avós da Praça de Maio — porque queriam encontrar
seus netos raptados. Durante a ditadura militar na Argentina, entre 1975 e
1983, milhares de jovens de esquerda “desapareceram”. Alguns destes jovens
adultos tinham bebês e algumas das mulheres estavam grávidas quando foram
levadas. As crianças foram entregues a casais que tinham vínculos com os
militares. As avós queriam identificar essas crianças.
P. E como a senhora conseguiu fazer
isso?
R. O DNA mitocondrial é herdado
apenas por via materna e é muito variável. Era a ferramenta perfeita para
relacionar uma criança com sua família por parte de mãe. As Avós
da Praça de Maio foram responsáveis por reunir mais de uma centena de
crianças com suas famílias, e o último caso foi há apenas alguns meses.
© 2015 New York Times News Service
Traducción de News Clips.
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