quarta-feira, 21 de junho de 2017

A visão, ou experiência-de-quase-morte, vivida pelo psiquiatra Carl Jung



em 1944, descrita por ele mesmo


O famoso psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) teve uma vivência inédita no ano de 1944, quando estava doente, que poderia ser descrita como uma visão ou uma impressionante experiência-de-quase-morte (EQM), que ele relatou por escrito e que está no livro “Memories, Dreams and Reflections“, num capítulo intitulado “Visões“. Como o criador da Psicologia Analítica e desenvolvedor da teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos, é curioso e rico ler o relato de Jung e seus encontros com formas primais e seu “conhecimento instantâneo” nessa experiência inusitada e inspiradora. No trecho traduzido que segue abaixo, Jung fala de impressionantes visões espaciais da Terra (que para nós hoje é fácil visualizar, com tantas filmagens de satélites e naves da Nasa coloridas e em HD, mas não pra ele em 1944), das fortes impressões sobre a existência de si mesmo em diferentes formas, e dos encontros com pessoas que lhe revelam respostas sobre a vida.
Segue o trecho.
 “Memórias, Sonhos e Reflexões” [TRECHO]
Por Carl Gustav Jung
“Um dia, após ser atendido com oxigênio, me vi fora do corpo e viajando pelo espaço, numa crescente subida, e abaixo de mim aparecia a Terra, o globo envolvido em esplêndida luz azul; e distinguia os continentes e o azul escuro do mar. Então, quis saber a que altura me encontrava, e fui informado que estava a 15OOkm. A visão da Terra de tal altura era a coisa mais maravilhosa que jamais tinha visto.”
Parece a mim que eu estava alto no espaço. Lá em baixo eu via o globo da Terra, banhado em uma gloriosa luz azul. Eu via o profundo mar azul e os continentes. Longe abaixo dos meus pés estava o Ceilão (atual Sri Lanka), e à distância acima de mim o subcontinente da Índia. Meu campo de visão não incluía a Terra inteira, mas sua forma global era claramente distinguível e suas linhas de contorno cintilavam com um brilho prateado através daquela maravilhosa luz azul. Em muitos lugares o globo parecia colorida, ou pintada de verde escuro como prata oxidada. Longe à esquerda estava um campo largo – o amarelo-avermelhado deserto da Arábia; era como se a prata da Terra tivesse assumido um tom vermelho-dourado. Então veio o Mar Vermelho, e longe, como se no topo esquerdo de um mapa – eu poderia quase ver um pedacinho do Mediterrâneo. Meu olhar foi direcionado fortemente para aquilo. Tudo o mais parecia indistinguível. Eu podia ver os Himalaias cobertos em neve, mas naquela direção estava nebuloso e confuso. Eu não olhei para a direita. Eu sabia que estava no ponto de partir da Terra.
Mais tarde eu descobri o quão alto no espaço alguém tem que estar para ter uma visão tão extensa – aproximadamente mil milhas! A visão da Terra dessa altura era a coisa mais gloriosa que eu já havia visto.
Depois de contemplá-la por um tempo, eu me virei. Eu estava virado de costas para o Oceano Índico, como era, e meu rosto olhava o Norte. Então me parece que eu havia feito a curva para o Sul. Algo novo entrou no meu campo de visão. Não muito longe eu vi no espaço um bloco negro gigante de pedra, como um meteorito. Era do tamanho da minha casa, ou maior. Estava flutuando no espaço e eu mesmo estava flutuando no espaço.
Eu tinha visto pedras parecidas na costa do Golgo de Bengala. Eram blocos de granito tawny, e alguns deles tinham sido escavados em templos. Minha pedra era um imenso bloco gigantesco e escuro. Uma entrada dava para uma pequena antecâmara. À direita da entrada, um hindu negro sentava em silêncio em postura de lótus sobre um banco de pedra. Ele usava um manto branco, e eu sabia que ele esperava por mim. Dois passos me levaram a essa antecâmara, e, no interior, à esquerda, estava o portão do templo. Inúmeros nichos pequenos, cada um com uma concavidade do tamanho de um pires preenchido com óleo de coco e pequenas mechas ardentes, cercavam a porta com uma grinalda de chamas brilhantes. Eu tinha visto isso uma vez, na verdade, quando visitei o Templo do Dente Santo em Kandy, no Ceilão (Sri Lanka), o portão tinha sido delineado por várias linhas de flâmulas de lâmpadas de óleo.
Quando me aproximei dos degraus que levam até a entrada na rocha, uma coisa estranha aconteceu: tive a sensação de que tudo estava sendo descartado, tudo eu que havia visto ou desejado ou pensado, toda a fantasmagoria da existência terrena, se desmanchava ou era desconectada de mim – um processo extremamente doloroso. Mas algo permaneceu, era como se eu agora levasse comigo tudo o que eu já havia feito ou experimentado, tudo o que tinha acontecido comigo. Eu também poderia dizer: foi comigo, e eu era aquilo. Eu era tudo aquilo, vamos dizer assim. Eu era minha própria história e me senti, com grande certeza: é isso que eu sou. Eu sou esse pacote do que tem sido e do que foi realizado.
Esta experiência me deu uma sensação de extrema pobreza, mas ao mesmo tempo de grande plenitude. Não havia mais nada que eu quisesse ou desejasse. Eu existia de forma objetiva, eu era o que eu tinha sido e vivido. No início, a sensação de aniquilação predominou, de ter sido assaltado ou saqueado, mas, de repente, aquilo não teve nenhuma consequência.
Tudo parecia ter passado; o que restou foi um “fato consumado”, sem qualquer referência ao que tinha sido. Não havia mais qualquer arrependimento de que algo havia sido subtraído ou tirado. Pelo contrário: eu tinha tudo que eu era, e isso era tudo.
Algo mais prendeu minha atenção: enquanto me aproximava do templo, tive a certeza de que eu estava prestes a entrar numa sala iluminada e iria encontrar lá todas as pessoas a quem eu pertencia na realidade. Lá eu finalmente iria entender – e isso também era uma certeza – o sentido (nexo) histórico a que eu ou minha vida estávamos conectados. Eu iria saber o que tinha existido antes de mim, porque eu tinha vindo a ser, e para onde minha vida estava fluindo. Minha vida como a vivi muitas vezes me parecia uma história sem começo nem fim. Tinha a sensação de que eu era um fragmento histórico, um trecho que estava faltando ao texto anterior e ao posterior. Minha vida parecia ter sido tirada de uma longa cadeia de eventos, e muitas questões permaneciam sem resposta. Por que ela foi por esse caminho? Por que eu trouxe essas premissas particulares comigo? O que eu tinha feito delas? O que acontecerá a seguir? Eu tinha certeza que iria receber respostas para todas as perguntas assim que eu entrasse no templo de pedra. Lá eu iria encontrar as pessoas que sabiam a resposta à minha pergunta sobre o que tinha sido antes e o que viria depois.
Enquanto eu estava pensando sobre essas questões, aconteceu algo que me chamou a atenção. Vindo de baixo, da direção da Europa, uma imagem apareceu. Era do meu médico, ou melhor, uma semelhança dele – emoldurada por uma corrente de ouro ou uma coroa de louros dourada. Imediatamente eu soube: ‘Ah, esse é o meu médico, claro, o que tem me tratado. Mas agora ele está vindo em sua forma primitiva. Em vida ele foi um avatar da realização temporal da forma primitiva, que existe desde o princípio. Agora ele está aparecendo nessa forma primal’.
Presumivelmente, eu também estava em minha forma primitiva, embora isso era algo que eu não enxergava, mas simplesmente sabia. Com ele diante de mim, uma troca muda de pensamentos teve lugar entre nós. O médico havia sido delegado pela Terra para entregar uma mensagem para mim, para me dizer que havia um protesto contra a minha partida. Eu não tinha o direito de deixar a Terra e deveria retornar. No momento que ouvi isso, a visão cessou.
Eu estava profundamente desapontado, pois agora tudo parecia ter sido em vão. O doloroso processo de despreendimento tinha sido em vão, e eu não tinha permissão para entrar no templo, para me unir às pessoas a cuja companhia eu pertencia.
Na realidade, umas boas três semanas ainda se passariam antes que eu pudesse me convencer a viver novamente. Eu não podia comer, porque toda a comida me enojava. A vista da cidade e das montanhas do meu leito parecia uma cortina pintada com buracos negros, ou uma folha de jornal rasgado cheio de fotografias que não significavam nada. Desapontado, eu pensei: “Agora eu tenho que voltar para o “sistema de caixa” novamente.” Porque pareceu a mim como se por detrás do horizonte do cosmos um mundo tridimensional havia sido artificialmente construído, no qual cada pessoa sentava-se sozinha em uma pequena caixa. E agora eu teria que me convencer mais uma vez que isso era importante! A vida e o mundo inteiro me pareceram uma prisão, e isso me incomodou muito que eu deveria achar que aquilo estava tudo bem e em ordem. Eu tinha sido tão feliz largando tudo aquilo, e agora estava acontecendo o fato que eu – juntamente com todos os outros – seríamos novamente presos em uma caixa por um fio.
Senti uma resistência violenta pelo meu médico, porque ele havia me trazido de volta à vida. Ao mesmo tempo, eu estava preocupado com ele. “Sua vida está em perigo, pelo amor de Deus! Ele apareceu para mim em sua forma primitiva! Quando alguém atinge esta forma isso significa que ele vai morrer, pois ele já pertence à “empresa maior.” De repente, um pensamento terrível me apareceu de que o médico teria que morrer em meu lugar. Tentei o meu melhor para falar sobre isso com ele, mas ele não me entendeu. Depois fiquei com raiva dele.
Na verdade eu era o último paciente dele. Em 4 de abril de 1944 – ainda lembro a data exata em que me permitiram sentar-me na beira da minha cama, pela primeira vez desde o início da minha doença, e neste mesmo dia o médico ficou de cama e não saiu mais. Ouvi dizer que ele estava tendo crises intermitentes de febre. Logo depois ele morreu de septicemia. Era um bom médico, havia algo de genial nele. Se não fosse isso, ele não teria me aparecido como um avatar da personificação temporal de uma forma primitiva.”
Durante aquelas semanas vivi num ritmo estranho. De dia eu estava geralmente deprimido. Me sentia fraco e cansado, e raramente me levantava. Melancolicamente eu pensava, “Agora devo voltar para esse mundo monótono”. Quando chegava a noite eu dormia, e meu sono durava até meia-noite. Então eu acordava e passava uma hora acordado, mas num estado profundamente transformado. Era com se eu tivesse em um êxtase. Eu sentia como se tivesse flutuando no espaço, como se eu tivesse seguro no útero do universo – em um tremendo vazio, mas preenchido com o mais alto possível sentimento de felicidade. “Isso é a graça eterna”, pensei. “Isso não pode ser descrito, e é maravilhoso demais!”.


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