segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Oliver Sacks se despede após anunciar um câncer terminal




Oliver Sacks, em 2002. / TOMAS MUSCIONICO (CONTACTO)

Escritor relata doença em artigo no 'The NY Times': "Foi um privilégio e uma aventura"


Com um artigo simples, emotivo e direto, paradoxalmente cheio de otimismo, o escritor e neurologista Oliver Sacks anunciou na quarta-feira, no The New York Times, que sofre de um câncer terminal e que tem apenas mais algumas semanas de vida. "Acima de tudo, fui um ser com sentidos, um animal pensante, neste maravilhoso planeta, e isso, em si, foi um enorme privilégio e uma aventura", escreveu o autor, cujos livros sobre os subterfúgios da mente humana, como Tempo de Despertar e O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, foram adaptados para o cinema e venderam milhões de exemplares no mundo inteiro.
Oliver Sacks, que tem 81 anos, recebeu a má notícia há algumas semanas, quando foi informando que sofre de metástase múltipla no fígado, procedente de um tumor original no olho detectado há oito anos. Ele afirmou que os médicos podem atrasar o avanço, mas não detê-lo.
Intitulada Minha Própria Vida, em homenagem à autobiografia escrita pelo filósofo David Hume quando também soube que sofria de uma doença sem cura, sua despedida é cheia de otimismo: "Estou intensamente vivo e quero e espero que o tempo que me resta por viver me permita aprofundar minhas amizades, me despedir daqueles que amo, escrever mais, viajar se tiver a força suficiente, alcançar novos níveis de conhecimento e compreensão. Isso incluirá audácia, clareza e falar com franqueza; vou tratar de acertar minhas contas com o mundo. Mas também terei tempo para me divertir (inclusive para fazer alguma estupidez)".
Sacks explica que publicará em abril suas memórias, e que tem vários outros livros a ponto de serem concluídos. O escritor confessa que não pensa em se dedicar a nada que não considere essencial, que não quer perder tempo. "Não posso dizer que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado; dei muito e me deram muitas coisas; li, viajei e escrevi".
Nascido em Londres em 1933, Sacks vive em Nova York desde os anos 1960. Ao longo dos anos, foi reunindo em seus livros as experiências pelas quais passou. Um Antropólogo em Marte, Enxaqueca, Com uma Perna Só, A Ilha dos Daltônicos, O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, O Tio Tungstênio: Memórias de uma Infância Química, Vendo Vozes: Uma Viagem ao Mundo dos Surdos, Tempo de Despertar e Alucinações Musicais são suas obras mais conhecidas.
Em uma entrevista a este jornal em 1996, realizada por ocasião da publicação de Um Antropólogo em Marte, Sacks falou justamente sobre a relação dos pacientes com as doenças. "Para mim é fundamental a relação que se estabelece entre doença e identidade, e a forma como a pessoa reconstrói seu mundo e sua vida a partir dessa doença", disse. "Todos os casos que exponho neste livro descobriram uma vida positiva que surgia após uma doença. O pintor que depois de perder a visão da cor não deseja recuperá-la. O cego de nascimento que recupera a visão na metade de sua vida e não consegue suportá-la. A mulher autista que encontra no autismo uma parte de sua identidade... Mas não quero parecer sentimental perante a doença. Não estou recomendando que se tenha que ser cego, autista ou sofrer da síndrome de Tourette, de forma alguma, mas em cada caso surgiu uma identidade positiva após algo calamitoso. Algumas vezes a doença pode nos ensinar o que a vida tem de valioso e nos permitir a vivê-la mais intensamente".
Há alguns meses, Sacks publicou um artigo maravilhoso no The New York Review of Books sobre as memórias e a ficção intitulado Fala, memória. No texto, ele relatava como, enquanto envelhecia, iam surgindo relatos cada vez mais claros de sua infância; recordava, por exemplo, dois episódios em que bombas nazistas caíram perto de sua casa em Londres quando era criança durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, seu irmão mais velho disse a ele que o primeiro incidente ele havia vivido, mas que o segundo tinha sido contado para ele, porque naquele momento já não estava mais em Londres.
Este episódio serve para Sacks fazer uma longa dissertação sobre a importância da ficção na vida, porque, no fim, o que lemos e nos impressiona acaba sendo tão importante como o que vivemos. "Nós, como seres humanos, desenvolvemos sistemas de memória que têm falhas, fragilidades e imperfeições", escreveu. "A indiferença sobre as fontes nos permite assimilar o que lemos, o que nos contam, o que outros dizem, e pensam, escrevem e pintam, de uma forma tão rica e tão intensa como se fossem experiências primárias. Nos permite ver e escutar com os olhos e ouvidos dos outros, entrar na mente dos demais, assimilar a arte e a ciência e a religião de toda uma cultura".
Esse texto é uma mostra da forma de escrever e pensar de Sacks e, por sua vez, da imensa influência de seus escritos sobre a maneira como vemos o mundo em que vivemos. A tranquila lucidez com a qual enfrenta a notícia de seu câncer sem volta é mais uma prova de sua sabedoria.


sábado, 21 de fevereiro de 2015

Aneurismas da aorta abdominal





A aorta e os seus ramos principais
O sangue que sai do coração através da aorta chega a todos os recantos do organismo, com excepção dos pulmões.
 
Os aneurismas no segmento da aorta que percorre o abdómen tendem a aparecer numa mesma família. Em muitas ocasiões, aparecem em pessoas com hipertensão. Tais aneurismas medem, com frequência, mais de 7 cm e podem romper-se (o diâmetro normal da aorta é de 1,7 cm a 2,5 cm).

http://www.manualmerck.net/?id=55&cn=2119

Sintomas
Uma pessoa com um aneurisma da aorta abdominal sente frequentemente uma espécie de pulsação no abdómen. O aneurisma pode causar uma dor profunda e penetrante, principalmente nas costas. A dor pode ser intensa e, habitualmente, é constante, embora as mudanças de posição possam proporcionar algum alívio.
O primeiro sinal de uma ruptura é geralmente uma dor intensa na parte inferior do abdómen e nas costas, assim como uma dor em resposta à pressão da zona que está por cima do aneurisma. Se se verificar uma hemorragia interna grave, o quadro pode evoluir rapidamente para um choque. (Ver secção 3, capítulo 24) A ruptura de um aneurisma abdominal costuma ser mortal.
Diagnóstico
A dor é um sintoma de diagnóstico muito útil mas que aparece tardiamente. No entanto, em muitos casos os aneurismas são assintomáticos e diagnosticam-se por casualidade durante um exame físico sistemático ou quando se efectuam radiografias por alguma outra razão. O médico pode aperceber-se da existência de uma massa pulsátil no meio do abdómen. Os aneurismas que crescem com rapidez e que estão prestes a romper-se doem espontaneamente ou quando são pressionados durante uma observação do abdómen. Nas pessoas obesas, pode mesmo acontecer que não se detectem aneurismas de grande dimensão.
Para o diagnóstico dos aneurismas podem utilizar-se várias investigações. Uma radiografia do abdómen pode mostrar um aneurisma com depósitos de cálcio na sua parede. De um modo geral, uma ecografia permite estabelecer claramente o seu tamanho. A tomografia axial computadorizada (TAC), em especial depois de ter sido injectado um produto de contraste por via endovenosa, é ainda mais exacta na determinação do tamanho e da forma de um aneurisma, mas é um exame mais custoso. A ressonância magnética (RM) é também muito precisa, mas mais dispendiosa do que a ecografia e raramente se torna necessária.
Tratamento
A menos que o aneurisma esteja a romper-se, o tratamento depende do seu tamanho. Um aneurisma com menos de 5 cm de largura raramente se rompe, mas se mede mais de 6 cm, a ruptura é muito mais provável. Por conseguinte, o médico aconselha, habitualmente, a intervenção cirúrgica para os aneurismas com mais de 5 cm de largura, a menos que isso envolva demasiados riscos por outros motivos médicos. A operação consiste em colocar um enxerto sintético para reparar o aneurisma. O índice de mortalidade para este tipo de cirurgia é aproximadamente de 2 %.
A ruptura ou a ameaça de ruptura de um aneurisma abdominal obriga a uma cirurgia de urgência. O risco de morte durante a intervenção cirúrgica de uma ruptura de aneurisma é de cerca de 50 %. Quando um aneurisma se rompe, os rins podem ficar lesionados por se interromper o fornecimento de sangue ou devido ao choque ocasionado pela hemorragia. Se ocorrer uma insuficiência renal depois da operação, as probabilidades de sobrevivência são muito escassas. Se não for tratada, a ruptura de um aneurisma é sempre mortal.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Como funciona o cérebro de uma pessoa apaixonada



 

A ciência não entende totalmente o sentimento, mas há mecanismos neurológicos que já são bem conhecidos. Não seja pego de surpresa


Assim como ninguém sabe exatamente o que é o amor, também não se sabe com certeza por que o dia de São Valentim (14 de fevereiro) é o dia dos apaixonados. Uma das suposições mais aceitas é essa: São Valentim era um sacerdote romano lá pelo ano 200, época em que o imperador decidiu proibir os casamentos dos mais jovens com o argumento de que o casamento debilitava os soldados. No entanto, contrário à medida, São Valentim celebrava casamentos às escondidas de quem assim o solicitava. Esse papel de casamenteiro o consagrou como patrono do amor (e também fez com que morresse martirizado). Mas essa é uma lenda a mais entre tantas outras que surgiram para explicar a questão. De forma parecida, muitos já tentaram elucidar o que é o amor, o que acontece quando ele aparece. E a ciência não se furta a esse interesse. Assumindo que todo sentimento tem um correlato físico (o coração não se acelera se um mensageiro químico não “lhe diz” que faça isso), muitos cientistas orientaram suas pesquisas recentemente no sentido de definir o que acontece no cérebro quando alguém se apaixona. Em uma tentativa de ir além das lendas, essas são cinco coisas, umas mais e outras menos insólitas, que o amor provoca em sua mente.
1. Cria vício
Entre as áreas cerebrais estimuladas pelo amor, algumas se destacam sobremaneira: são as que formam o circuito de recompensa. Entre elas, impõe-se o chamado núcleo accumbens, uma pequena região situada alguns centímetros atrás de seus olhos, muito sensível à dopamina —neurotransmissor que aumenta com a paixão— e ao qual se conhece, popularmente, como o centro do prazer. É ele que é ativado especialmente quando recebemos um prêmio, quando temos sede e bebemos água ou quando consumimos praticamente todo tipo de droga. Realmente, o circuito de recompensa é também o circuito do vício, daí o caráter viciante das primeiras fases do amor. “O aumento da dopamina é muito grande no início das relações”, comenta Larry Young, pesquisador de neurociência do comportamento da Universidade de Emory, em Atlanta, e autor do livro Química entre nós. Amor, sexo e a ciência da atração. “De fato, vimos que os ratos que perdem seus companheiros se deprimem de uma forma muito parecida ao que acontece com um viciado de quem se retira a cocaína ou a heroína”, acrescenta. Mas não só isso: o aumento da dopamina ocorre em paralelo à redução central de outro transmissor, a serotonina, e essa falta acontece também nos transtornos obsessivos, de cujos traços principais o amor não está muito longe.
A paixão não é uma doença, mas cerebralmente e de longe pode parecer
2. Remete à família, queiramos ou não
A ocitocina e a vasopressina são dois pequenos hormônios cuja produção máxima acontece em momentos aparentemente distantes da paixão: no parto e durante a amamentação (à medida que o bebê suga o peito). Entre suas muitas funções estão a de fortalecer o vínculo entre a mãe e o filho. E o amor (romântico) também se aproveita dele. Na paixão, parece aumentar a produção de ocitocina e vasopressina, contribuindo assim para fortalecer a relação. Isso tem sentido do ponto de vista evolutivo: gasta-se um tempo e uma energia consideráveis para se encontrar um parceiro idôneo. Uma vez conseguido, o laço deve ser reforçado para tentar garantir que ambos cuidarão da possível descendência. Pelo menos é assim que a natureza tende a “pensar”.
3. Obscurece o julgamento e a razão
Para identificar as regiões do cérebro ativadas com a paixão, os cientistas costumam usar o que se conhece como ‘ressonância magnética funcional’. Essa técnica capta a maior ou menor chegada de oxigênio a cada área, um sinônimo da demanda que a atividade cria. Ainda que seja um procedimento um tanto problemático (melhor não confiar em uma pesquisa só), vários trabalhos chegaram a conclusões parecidas. Foi assim que se viu que, durante a paixão, o circuito de recompensa trabalha com especial fervor, e que o córtex pré-frontal parece “desligar”. Esta última é a área do cérebro mais propriamente humana, a responsável fundamental por nossa capacidade de raciocinar e emitir julgamentos elaborados. As consequências são evidentes: o amor obscurece, pelo menos sobre a pessoa amada, a capacidade crítica. Isso explicaria a crença de que “o amor é cego”, ou até a frase de Ortega y Gasset, que o definiu como “um estado de imbecilidade transitório”. Mas obedece a uma razão: aumenta as possibilidades de união. Ou, como Nietzsche resumiu antes, “sempre há algo de loucura no amor, mas sempre há algo de razão na loucura”.
4. Produz estresse e dá valor
Como resumiu Nietzsche, “sempre há algo de loucura no amor, mas sempre há algo de razão na loucura”
O amor produz uma onda de estresse ao longo do tempo. Trata-se, em princípio, de uma ativação do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, o que significa, entre outras coisas, que o cérebro manda sinais para produzir mais adrenalina. Uma interpretação que se faz é que esse grau de estresse permite superar o medo inicial, o que se conhece como neofobia. Com os meses, no entanto, o mecanismo diminui, dando lugar a uma sensação de tranquilidade (os demais hormônios e circuitos envolvidos também se ajustam com o tempo). O curioso é que este fenômeno é um dos poucos em que os acontecimentos cerebrais entre amor romântico e maternal não se sobrepõem. Porque no cérebro de uma mãe (possivelmente também no do pai, mas os estudos foram feitos especialmente no primeiro caso, onde as mudanças hormonais são mais pronunciadas) também tem lugar uma ativação da área de recompensa e um aumento de dopamina; igualmente, há um aumento claro de oxitocina e vasopressina; e também se produz uma inibição do córtex pré-frontal (a mãe “suspende o julgamento” quando se trata de seu filho). De fato, essa correspondência entre ambos os tipos de amor levou a pensar que o amor romântico evoluiu que um sistema mais antigo: o do amor de uma mãe por seu filho. Entretanto, neste caso, não há uma reação do hipotálamo, como a que ocorre nos casais.
5. Torna-o monógamo (ou não)
A ciência ainda não foi capaz de determinar se, por natureza, somos monógamos, polígamos ou monógamos sequenciais, mas se sabem algumas das coisas que influem nessa realidade. Pelo menos em ratos. Os roedores do campo são monógamos convictos, profundamente fiéis a seu parceiro. Os da montanha, pelo contrário, são promíscuos contumazes. A explicação? Os primeiros têm muitos mais receptores de oxitocina e vasopressina nas áreas de recompensa. De fato, quando estes hormônios são bloqueados no laboratório, os ratos do campo se comportam como se fossem ratos da montanha, sem nenhum tipo de memória nem predileção especial por qualquer de seus parceiros. Os humanos não são ratos. É evidente que nossa fidelidade depende de muito mais fatores que nesses animais. Mas tampouco parecemos imunes. Algumas variações nos receptores de vasopressina, por exemplo, foram associadas a uma maior ou menor promiscuidade. Não são determinantes, mas constituem um fator que pode chegar a intervir. Como comenta Larry Young, algumas pesquisas observaram que quando se ministrava oxitocina intranasal a homens que estavam em uma relação, achavam suas parceiras mais atraentes do que quando se ministrava placebo. “Mas acontecia somente com suas parceiras: a oxitocina não aumentava sua atração por outras mulheres de aparência semelhante, nem ativava suas áreas de recompensa como ocorria quando viam suas companheiras”, esclarece.
Em resumo, você pode estar pensando que a ciência ainda não sabe muito sobre o amor. Pode ser. Talvez esteja convencido de que a razão não pode compreender a paixão em toda sua complexidade. Muitos cientistas também acreditam. O próprio Larry Young, sem ir mais longe, opina: “A ciência será capaz de nos dizer muitas coisas sobre a química e os mecanismos cerebrais envolvidos no amor. Mas não nos fará entender sua magia. Isso só se pode entender estando apaixonado”. E acrescenta: “É possível que sua essência seja melhor entendida com a poesia, a música ou a arte, mas a ciência pode contribuir para compreender parte de seu mistério”. Porque o que é óbvio é que todo sentimento tem sua contraparte física, e que, em boa medida, esta pode ser estudada. Até onde chegará sua explicação, isso ninguém sabe.

“Metade das mulheres com risco de ter câncer de mama não sabem”





A geneticista Mary-Claire King. / WORLD SCIENCE FESTIVAL

A cientista que identificou os genes do tipo de tumor reflete sobre o papel da genética


Nunca existiu uma carreira científica parecida com a de Mary-Claire King. Há anos, em sua tese de doutorado, ela chegou à conclusão de que os humanos e os chimpanzés são, do ponto de vista genético, 99% idênticos (uma ideia revolucionária). Seu posterior trabalho sobre cânceres humanos teve como consequência a descoberta do chamado gene do câncer de mama, BRCA1, que transformou o diagnóstico e o tratamento desta doença.
Além de suas pesquisas científicas tradicionais, King criou testes genéticos que ajudam a determinar a identidade das vítimas da violência policial em lugares como Ruanda e El Salvador. E tudo isso ao mesmo tempo em que era mãe solteira e criava a filha.
King, de 68 anos, trabalha agora como geneticista na Universidade de Washington. Falamos com ela em Nova York, depois de receber o prestigioso prêmio Lasker. Abaixo, apresentamos uma versão condensada e editada dessa entrevista.
Pergunta. Como a senhora começou a estudar os aspectos genéticos do câncer de mama?
Resposta. De maneira indireta. No final da década de 1960, estudava estatística na Universidade de Berkeley. E lá fiz um curso de genética, me apaixonei pela disciplina, mudei de especialidade e nunca olhei para trás. Logo após terminar o doutorado, fui ao Chile para dar aulas, mas o golpe militar de setembro de 1973 pôs fim a esse projeto. Alguns dos meus estudantes não sobreviveram. Deixei o país pouco depois. No começo de 1974, já outra vez na área da baía de San Francisco, buscava trabalho e tive a sorte de que me oferecessem um na Universidade da Califórnia, para estudar o câncer de mama. Claro que o câncer de mama não era minha especialidade. Mas pensei que a genética, a biologia evolutiva e a estatística poderiam fornecer algo à guerra contra o câncer que acabava de começar. E minha melhor amiga de infância tinha morrido de câncer. Queria tentar.
P. Na década de 1970, qual era a teoria predominante sobre as causas do câncer de mama?
R. A teoria predominante era a de que o câncer era viral. Eu pensava que a herança genética tinha que influenciar, pelo menos em algumas famílias. Para minha sorte, o Instituto Nacional do Câncer estava estudando os anticoncepcionais orais e entrevistando 1.500 mulheres com câncer de mama. Perguntei se podiam acrescentar ao estudo algumas perguntas sobre os antecedentes familiares: as pacientes têm parentes mulheres próximas com câncer de mama? E com câncer de ovário?
Depois adicionei uma pergunta estatística: “Os casos de câncer se concentram em certas famílias mais do que o normal para supor que aparecem por acaso?”. A resposta foi sim. De todas as explicações possíveis, a mais provável do ponto de vista estatístico era que um gene com mutações fosse o responsável pelo câncer de mama em, aproximadamente, 4 % dos casos.
Mas o gene era uma hipótese. A melhor maneira de demonstrar que ele existia era encontrá-lo. Em 1990, meu grupo publicou a prova de que o gene, que chamamos de BRCA1, ficava no cromossomo humano 17. O artigo marcou o início de uma corrida para clonar o gene, em laboratórios públicos e privados, entre eles o meu.
P. Após clonar o gene, o Myriad Genetics conseguiu uma patente sobre ele. Como a senhora se sentiu?
R. Eu me senti extremamente aliviada quando o BRCA1 foi clonado. Isso significava que podíamos continuar a tentar compreender como as mutações nele provocavam o câncer de mama. Mas, durante os meses seguintes, o assunto da patente se transformou em um autêntico problema. O Myriad exigia o uso exclusivo do BRCA1.
As patentes genéticas anteriores tinham obtido permissões não exclusivas e não tinham alterado a forma de usar os genes em pesquisas e diagnósticos. Mas o teste oferecido pelo Myriad custava mais de 3.000 dólares (cerca de 8.500 reais) e só havia um lugar no qual podia ser feito. O seguro médico de muitas mulheres não cobria o teste, e era muito caro para que elas pudessem custeá-lo por conta própria.
P. A exclusividade da patente foi um obstáculo para as pesquisas?
R. Houve um momento em que recebi uma carta de requerimento do departamento legal do Myriad pedindo que eu deixasse de estudar o BRCA1. Nessa época, meu laboratório ficava na Universidade de Washington, em Seattle. O escritório de nosso procurador-geral do Estado escreveu à empresa dizendo que eu trabalhava nesse campo desde 1974, que coordenava uma pesquisa financiada por fundos públicos e que não estava comercializando nenhuma prova (nem nada parecido). O escritório do procurador-geral também disse que me representaria se a empresa insistisse. Não voltei a saber mais nada sobre o assunto.
P. Como a senhora se sentiu quando, em 2013, o Tribunal Supremo decidiu…
R. Acabar com a patente? Eu me senti ótima! Os nove membros do tribunal decidiram, por unanimidade, que os genes eram produtos naturais e que não podiam ser patenteados. Desde então, os testes são oferecidos em uma variedade muito maior de lugares e o preço se reduziu de maneira considerável.
P. Há pouco tempo, a senhora publicou um artigo na revista médicaJAMA, no qual propõe que todas as mulheres com mais de 30 anos façam esse teste genético.
R. Acho que os testes do BRCA1 e do BRCA2 devem ser oferecidos a todas as mulheres com cerca de 30 anos de idade, como parte do atendimento médico rotineiro. Quase a metade das mulheres que herdam mutações no BRCA1 ou no BRCA2 não tem históricos de câncer de mama ou ovário na família, e não têm nem ideia de que são portadoras de mutações que causam câncer.
A maioria dos cânceres de mama e ovário hereditários pode ser prevenida, se aquelas que têm a mutação souberem disso. Mas está claro que a solução não é agradável. É preciso extirpar os ovários e os trompas de Falópio por volta dos 40 anos, para eliminar quase todo o risco de desenvolver o câncer de ovário e reduzir aproximadamente pela metade o de ter câncer de mama. Algumas mulheres optam também por uma mastectomia preventiva para diminuir o risco de câncer de mama quase a zero.
P. A senhora ajudou na implementação de testes genéticos para reparar violações dos direitos humanos.
R. Em 1983, um grupo de mulheres argentinas me contratou — as Avós da Praça de Maio — porque queriam encontrar seus netos raptados. Durante a ditadura militar na Argentina, entre 1975 e 1983, milhares de jovens de esquerda “desapareceram”. Alguns destes jovens adultos tinham bebês e algumas das mulheres estavam grávidas quando foram levadas. As crianças foram entregues a casais que tinham vínculos com os militares. As avós queriam identificar essas crianças.
P. E como a senhora conseguiu fazer isso?
R. O DNA mitocondrial é herdado apenas por via materna e é muito variável. Era a ferramenta perfeita para relacionar uma criança com sua família por parte de mãe. As Avós da Praça de Maio foram responsáveis por reunir mais de uma centena de crianças com suas famílias, e o último caso foi há apenas alguns meses.
© 2015 New York Times News Service
Traducción de News Clips.