sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A “tempestade perfeita” que originou a Aids






A pandemia surgiu em Kinshasa por volta de 1920
O crescimento urbano, o boom ferroviário e o comércio sexual se somaram para propagar o HIV pela África e pelo mundo


A recente epidemia de ebola deu destaque novamente aos vírus emergentes, agentes secretos vindos de outras espécies para fazer uma devastação na nossa, aproveitando-se da virgindade do sistema imunológico humano contra eles. O HIV, que já infectou 75 milhões de pessoas, também foi um vírus emergente procedente dos chimpanzés na década de 1920, o que revela a importância de compreender esses saltos entre espécies e os fatores subjacentes ao seu contágio entre os seres humanos. E é exatamente isso o que acaba de fazer uma equipe dirigida por virologistas de Oxford (Reino Unido) e Lovaina (Bélgica), com a participação de cientistas espanhóis.
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Essas novas técnicas matemáticas, que reconstroem o passado a partir de sequências de DNA, permitem um detalhamento histórico impressionante. Os pesquisadores conseguiram determinar que a pandemia surgiu em Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo, por volta de 1920, e que sua propagação foi fruto de uma "tempestade perfeita", segundo expressão dos cientistas. O crescimento de Kinshasa e das demais cidades congolesas nessa época, a grande extensão da rede ferroviária sob o domínio colonial belga, o tráfico de trabalhadoras sexuais e, já nos anos sessenta, a independência do país se conjugaram para propagar – primeiro pela África, e depois por todo o mundo – uma das piores pandemias da história.
Os primeiros casos de Aids que a medicina registrou ocorreram nos Estados Unidos, em 1981, e dois anos depois foi descoberto seu agente causador, o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Mas logo ficou evidente que a doença já existia na África desde bem antes, e não exatamente em um estado latente, pois o vírus estava fortemente estabelecido nas populações heterossexuais da África central e oriental. Essa história profunda da epidemia, simplesmente, havia permanecido oculta para a ciência e sepultada sob estratos de miséria na zona mais esquecida do planeta.
Quando os primeiros casos foram descobertos nos EUA, o vírus já estava bem estabelecido entre populações heterossexuais da África
O estudo, que sai na sexta-feira na Science, reconstrói a história do HIV – em especial da cepa M, que é o subtipo que se propagou por toda a África e o resto do mundo – com as sofisticadas técnicas matemáticas da evolução molecular, amparadas na comparação de sequências de DNA (ou RNA, a molécula irmã que esse vírus utiliza para armazenar informação genética). O princípio é simples – os vírus com sequências parecidas têm uma origem comum recente, e quanto menos parecidas elas são, mais remoto é seu parentesco –, mas nos últimos anos esse trabalho alcançou uma grande complexidade matemática. Os métodos estatísticos dessa pesquisa foram desenvolvidos pelos próprios autores.
O salto do HIV dos primatas para os humanos não é um fenômeno tão raro: ocorreu pelo menos 13 vezes, pelo que os cientistas conseguiram descobrir. Só um desses saltos, entretanto, foi o responsável pela pandemia global, e esse é o vírus que o novo trabalho pôde traçar até Kinshasa, por volta de 1920. Nas décadas seguintes a essa data ocorreu a tempestade perfeita.
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A difusão original do HIV ocorreu sobretudo a partir de Kinshasa para outros centros populacionais. Por volta de 1937 ocorreram os primeiros contágios na cidade vizinha de Brazzaville (ou, mais exatamente, os primeiros em que a cepa viral causadora sobreviveu até que alguém colheu uma amostra mais recentemente – essa é a limitação da evolução molecular). Também no final dos anos 30 ele havia chegado às localidades de Lubumbashi e Mbuji-Mayi, no sul do Congo Belga, o que é compatível com os dados históricos de transporte e com os movimentos de migrantes de Kinshasa para as outras cidades. A dispersão continuou até Bwamanda (1946) e Kisangani (1953).
A principal rota de transmissão foi a ferrovia, e apenas 5% dos movimentos ocorreram pela rede fluvial. Os trens do antigo Congo Belga (depois chamado Zaire, e atualmente República Democrática do Congo) transportavam 300.000 passageiros ao ano em 1922, e quase um milhão em 1948. As cidades conectadas a Kinshasa por via férrea serviram depois como focos secundários, de onde o vírus se propagou aos países vizinhos.
O salto do HIV de primatas para humanos não é um fenômeno tão raro: ocorreu pelo menos 13 vezes
"Consideramos provável que as mudanças sociais associadas à independência, em 1960, tenham levado o vírus a escapar dos pequenos grupos de pessoas que ele infectava até então e passasse a se propagar pela população africana, e finalmente por todo o planeta", diz o autor principal do trabalho, Nuno Faria, do departamento de Zoologia da Universidade de Oxford.
A contribuição espanhola veio do biólogo David Posada, especialista em recombinação genética, da Universidade de Vigo. "Os dados foram colhidos há cinco anos e ficaram engavetados até que os pesquisadores de Oxford tivessem tempo de organizá-los nesse artigo", explica Posada. Seu papel foi garantir que a recombinação genética – um processo que embaralha os genes do vírus, de forma semelhante ao que ocorre em nossas gônadas a cada geração – não turvasse as análises estatísticas que identificam a origem do vírus na Kinshasa de 1920. "As conclusões são robustas", assegura o biólogo, "embora, certamente, não extrapoláveis ao ebola".

Imagem: Um paciente com Aids em Mbanza-Ngungu (Congo). / Carl Gierstorfer


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