Células tumorais dividindo-se.
/ GETTY
Diagrama com os tumores analisados, à
esquerda, os que se devem principalmente ao fator sorte, à direita, os tipos
nos quais afetam também fatores ambientais e hereditários. / E. COOK
Estudo quantifica pela primeira vez que
65% do risco de câncer se deve ao azar
Em um de seus contos, Jorge Luis Borges
inventou a loteria da Babilônia, controlada por uma organização cada vez mais
secreta e poderosa que acaba dominando as vidas de todos os habitantes. O
prêmio em alguns casos era a morte e a loteria, uma variante do destino. “A
Babilônia não é outra coisa senão um jogo de azar infinito”, escreveu o
argentino.
No mundo real, o câncer também é um
jogo de azar infinito. Grande parte dos tumores conhecidos não ocorrem por
fatores externos e evitáveis, como fumar, nem por razões hereditárias dos
genes, mas também por puro azar. Agora, um estudo quantificou quanto pesa esse
fator sorte no câncer. Seus resultados, publicados nesta
quinta-feira na revista Science, confirmam que a “má sorte” explica
dois terços de todo o risco de câncer em um tecido enquanto as variantes
genéticas e ambientais explicam outro terço.
A má sorte se deve “a mutações aleatórias
que ocorrem durante a divisão normal das células-mãe quando essas acontecem em
genes que agem no desenvolvimento do câncer”, explica o estatístico e
matemático da Universidade Johns Hopkins (EUA) Cristian Tomasetti, coautor do
trabalho. “Possivelmente isso não contradiz o que já se pensava, mas é a
primeira vez que essa contribuição da má sorte é medida, e o resultado é que
tem um papel mais importante do que se acreditava”, argumenta.
No corpo existem tecidos que têm milhões
de vezes mais
probabilidades do que outros de desenvolver um tumor. Os fatores
externos e os genéticos não poderiam explicar toda essa diferença, por exemplo,
por que os tumores de pulmão são muito mais frequentes que os ósseos, até mesmo
nos não fumantes. O trabalho quantifica agora o papel de outra grande peça do
quebra-cabeças: as células-mãe. Cada vez que uma célula-mãe se divide para
gerar outra, seu DNA é copiado e nesse processo ocorrem erros que, acumulados,
explicam grande parte dos tumores. Junto com seu companheiro Bert Vogelstein,
oncologista da Johns Hopkins e Prêmio Príncipe de Astúrias da área da ciência
em 2004, Tomasetti calculou quantas divisões celulares acontecem em 31 tecidos
do corpo ao longo de toda a vida e demonstrou que esse número está fortemente
relacionado com o risco de sofrer um tumor nesses tecidos. Quanto maior o
número de divisões, maior o risco. No total, por volta de 65% dos tumores
seriam explicados por esse fator sorte, segundo seus dados.
Um exemplo: no cólon ocorrem 150 vezes
mais divisões de células-mãe do que no duodeno, o que explica porque os tumores
são até 30 vezes mais frequentes, ainda que os riscos hereditários sejam os
mesmos. Algo parecido acontece ao se comparar as células basais da pele e os
melanócitos. Ambas recebem risco externo idêntico na forma de radiação solar,
mas as basais se dividem muito mais e por isso o carcinoma de células basais é
muito mais frequente do que no melanoma.
Com os dados estatísticos nas mãos, os
autores dividem os 31 tumores estudados em dois grandes tipos. Em
um estão o câncer de pulmão em fumantes, o câncer de fígado em pacientes
com hepatite C e outros sete tipos nos quais os fatores externos e os
hereditários somam-se ao risco inerente de que esses órgãos desenvolvam um
tumor. Em outro estão 22 tumores como o câncer de pulmão em não fumantes, o
glioblastoma, a leucemia linfoide crônica e o câncer de esôfago, cuja causa é
primordialmente esse fator sorte baseado na divisão das células-mãe.
O bioestatístico Tomasetti ressalta duas
conclusões importantes. A primeira é que, ainda que até agora o fato de uma
pessoa não ter câncer apesar de estar exposta a compostos cancerígenos como o
fumo de tabaco ser atribuído aos “bons genes”, o certo é que na maioria dos
casos teve somente “boa sorte”. A segunda é que “enquanto mudar os maus hábitos
é uma enorme ajuda para prevenir alguns tipos de câncer, isso não é tão efetivo
para outros”. “Por isso deveríamos fazer mais esforços na área da pesquisa e
recursos para desenvolver formas de detecção prematura para detectar esses
outros tipos de câncer nas primeiras etapas, quando ainda têm cura”, conclui.
O pesquisador da Universidade de Oviedo
Carlos López-Otín é cético sobre esse estudo. Por um lado, falar de “má sorte”
no câncer pode “gerar confusão”, diz, e fazer com que as pessoas baixem a
guarda assumindo que grande parte de seu risco de câncer é inevitável. Por
outro, diz, esse estudo não mostrou conceitualmente nada de novo, além de
quantificar estatisticamente a contribuição de fatores genéticos, ambientais e
os por conta de mero azar.
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