Quero começar por agradecer o convite que me foi dirigido para intervir na abertura deste “Curso para Membros de Comissões de Ética”. Aceitei com agrado aquilo que considerei ser não apenas uma honra mas também um desafio porque, como é sabido, não sou especialista nem em bioética nem em ensaios clínicos. O que me motivou então para abrir um curso no qual conhecidos especialistas do nosso meio médico irão apresentar exposições sobre matérias em que não possuo créditos especiais?
27-1-2005 A.J. Barros Veloso
http://afilosofia.no.sapo.pt/10nprobleticosEut.htm
Como muitos colegas de profissão, toda a minha carreira foi dedicada prioritariamente à actividade clínica que exerci com persistência e convicção. O mesmo é dizer que, acima de tudo, o meu objectivo foi ser útil e fiel aos doentes que me procuraram a quem, dentro das minhas possibilidades, procurei proporcionar bem-estar e confiança e, sempre que possível, libertar do sofrimento ou até da morte prematura.
Foi um percurso muito rico que me obrigou constantemente a decisões, por vezes difíceis, em que estava implícito o respeito pela dignidade e pela integridade de quem necessitava da minha ajuda. Ao longo de várias décadas este exercício foi modelando naturalmente uma atitude e um comportamento ético, na medida que me vi obrigado a analisar e compreender os factores que estavam em jogo em cada situação concreta. Poderá chamar-se a isto ética “espontânea” – em oposição à “ética teórica” -- porque baseada sobretudo na prática, sem suporte teórico consistente. Mas foi ela que me permitiu não só estar à vontade entre os “eticistas” de carreira e poder dialogar com eles, como também manter uma salutar distanciação crítica de quem viveu directamente os problemas e se considera, por isso mesmo, em boa posição para poder apelar ao bom senso e à moderação sempre que isso se torne necessário.
O título da palestra que me propuseram foi “A investigação como dimensão constitutiva da medicina contemporânea” e vou procurar não fugir ao tema. Começarei com uma pergunta: o que é isto a que chamamos “investigação”. De uma maneira muito abrangente e sintética direi que na palavra “investigação” – e estamos neste caso a falar de investigação científica -- se incluem todos os processos racionais que procuram desvendar e compreender o mundo que nos cerca, e alargar o âmbito dos nossos conhecimentos. Mas como é que isso se consegue?
Francis Bacon, que foi um dos fundadores da Revolução Científica e que definiu as regras do método indutivo utilizado com grande êxito pela ciência moderna, é o autor de uma metáfora em que critica as “formigas”, ou seja, os empiristas, que apenas acumulam dados, e as “aranhas”, ou seja, os racionalistas, que tecem a sua teia, indiferentes à realidade. Para ele o verdadeiro método científico pode comparar-se ao que fazem as “abelhas” que colhem o néctar da natureza e o transformam em mel, ou seja, que utilizam a experiência e a transformam em saber.
Bacon, ao contrário dos cépticos, era um optimista, no sentido de que acreditava que nós podíamos conhecer o mundo. No seu Novum Organum – que escreveu para substituir o Organum de Aristóteles -- traçou o seu método que consistia, antes de mais nada, numa observação correcta da natureza (porque a natureza é um livro aberto que é preciso saber interrogar) seguida de uma hipótese amplificadora chamada indução com a qual é possível alargar o conhecimento do mundo. Este é um aspecto importante que aqui quero realçar pois, como veremos, os ensaios clínicos utilizam basicamente o método indutivo.
Mas o que é igualmente interessante é que Bacon entendia que para interrogarmos correctamente a natureza, era necessário libertamo-nos daquilo a que ele chamou os “ídolos” ou seja, toda a casta de preconceitos que deformam e falsificam os dados da experiência. O que ele defendia era uma espécie de observação neutra, uma assepsia completa da mente em relação a quaisquer ideias pré-concebidas que não permitem ver a realidade tal como ela é. Quando se lê Bacon não podemos deixar de pensar naquilo a que os ensaístas clínicos chamam os “viéses”, ou “enviesamentos”, e nos quais incluem os diversos acidentes que podem deturpar ou deformar a realidade dos factos e que conduzem a conclusões erradas.
De viéses nos ensaios clínicos falaremos mais adiante. Por agora diremos apenas que a convicção de que poderia haver uma observação neutra, sem viéses, iria dominar o pensamento científico durante os séculos XVIII e XIX. Magendie, mestre de Claude Bernard, diria uma frase com a qual sintetizou esta convicção: “Quando eu investigo só tenho olhos e ouvidos: não tenho cérebro” e com isto queria dizer que, atento aos factos da observação, estava disposto a esquecer tudo quanto tinha aprendido antes, como condição necessária para compreender as respostas que a natureza lhe fornecia através dos dados da experimentação.
Contudo, a reflexão sobre o conhecimento científico que iria fazer-se durante o século XX não permitiria manter esta doce ilusão. Popper afirmaria sem qualquer rebuço que qualquer “observação é sempre selectiva” e está sempre dependente de uma “carga teórica”. Nesta linha de pensamento Bachelard iria mais longe ao dizer que os próprios instrumentos que utilizamos nas observações científicas não são mais do que “teorias materializadas”.
(Palestra proferida na abertura do “IV Curso de Formação para Membros de Comissões de Ética” da Faculdade de Medicina de Lisboa)
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