A investigação como dimensão constitutiva da medicina contemporânea.
Considera-se que foi no ano de 1950 que se verificou a viragem do paradigma tradicional -- em que o conhecimento médico se baseava exclusivamente no saber acumulado na prática diária --, para o novo paradigma -- em que a validade de novos tratamentos teria que ser objectivamente testada.
27-1-2005 A.J. Barros Veloso
http://afilosofia.no.sapo.pt/10nprobleticosEut.htm
Nesse ano ficou claramente demonstrado que a associação de duas drogas, a estreptomicina e o PAS, resultavam numa importante melhoria de 80% dos doentes com tuberculose. Pela mesma altura eram obtidas provas convincentes de que o tabaco era causa de cancro do pulmão. Estes dois acontecimentos iriam consagrar definitivamente o papel do método estatístico como o árbitro da “verdade científica” no conhecimento médico, para o que muito contribuiu a acção de Sir Austin Bradford Hill, professor de estatística médica na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
A partir daí as metodologias e a investigação ligadas aos novos medicamentos iria crescer em progressão geométrica, acompanhadas de uma influência crescente da indústria química que aumentaria significativamente os investimentos financeiros na área farmacêutica.
Os “ensaios clínicos” passaram a ser o ponto de passagem obrigatório para provar a eficácia terapêutica de qualquer produto que pretendesse entrar no mercado dos medicamentos. Mas seria uma ilusão pensar que desta forma se tenha ficado na posse de um método para nos conduzir à “verdade científica” ou capaz de garantir, nos casos individuais, a eficácia e a segurança dos produtos testados. A única coisa que faz é indicar a probabilidade maior ou menor de que isso aconteça.
Mas, para além disso, muitas ciladas e armadilhas estão presentes no longo percurso que, da descoberta de substâncias activas, conduz à sua aplicação terapêutica.
A este propósito não irei demorar-me sobre aquilo que são verdadeiros “casos de polícia” mas que mesmo assim não podem ser desvalorizados. Ainda na semana passada um cientista norueguês se viu obrigado a confessar publicamente que o estudo por ele realizado em 908 doentes acerca do efeito protector dos anti-inflamtórios no cancro oral e que foi publicado na prestigiada revista The Lancet, tinha sido totalmente inventado.
Recorde-se igualmente o caso do coreano que anunciou uma clonagem que nunca tinha feito e ainda os célebres pedidos de desculpas do New England Jornal of Medicine aos seus leitores pela publicação de artigos que se verificou mais tarde terem sido completamente forjados. Estes casos só mostram que a comunidade dos cientistas está, como todas as outras, infiltrada de falsificadores e vigaristas sem escrúpulos contra os quais temos que criar mecanismos de defesa.
O que é mais importante é ter a consciência de que os viéses ou enviesamentos são inerentes aos próprios “ensaios clínicos”. Já fiz referência às fragilidades do método indutivo que, apesar dos seus méritos, possui pontos fracos que têm sido denunciados por todos aqueles que se dedicam à teoria do conhecimento. De facto, a observação está, como vimos, inevitavelmente dependente da “carga teórica” (ou dos preconceitos) de quem a realiza, o que quer dizer que, no caso dos ensaios clínicos, é fortemente influenciada pela concepção do desenho do estudo e pela forma correcta ou incorrecta como ele é planeado e concebido. É por isso que se diz que o melhor momento para ter uma ideia acerca da qualidade da “evidência” de um ensaio clínico, é exactamente antes de ele começar.
Por outro lado qualquer ensaio clínico baseia-se numa amostra de doentes seleccionados e, por inferência (ou indução) procuram-se aplicar os resultados, que possuem um grau de probabilidade variável, a uma população heterogénea. Mas será rigorosamente fiável extrapolar os resultados obtidos numa população seleccionada para uma multidão de casos individuais com grandes diferenças uns em relação aos outros?
Percebe-se assim que observação e inferência são etapas da investigação susceptíveis de ser afectadas por múltiplos factores. Carreirismo, competição individual, questões de prestígio ou, mais terra-a-terra, a simples necessidade de manter patrocínios financeiros – tudo isso pode funcionar como causa de “enviesamento” da própria investigação. Na história da medicina do século XX abundam exemplos célebres desta inter-accção que influenciou, quer de forma positiva quer negativa, a conduta de alguns cientistas.
Veja-se por exemplo Watson e Crick claramente apostados em “roubar o Nobel” a Linus Pauling e que, de acordo com os seus próprios cálculos, só dispunham de seis semanas para descobrir a estrutura do ADN; ou o caso de Robert Gallo que, quando percebeu que tinha sido ultrapassado por Montagnier na identificação do vírus da sida, não resistiu e cometeu o acto inqualificável de divulgar, como sendo suas, descobertas alheias.
(Palestra proferida na abertura do “IV Curso de Formação para Membros de Comissões de Ética” da Faculdade de Medicina de Lisboa)
Sem comentários:
Enviar um comentário