segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A investigação como dimensão constitutiva da medicina contemporânea. Um caso mais antigo, o do Interferon


Mas a concorrência feroz que se trava actualmente entre os laboratórios da indústria farmacêutica constitui igualmente um factor que pode enviesar e distorcer resultados. A pressão exercida na área dos medicamentos é tal que nem sempre é possível estabelecer com clareza a fronteira que separa o marketing da investigação. O que se passou com os inibidores da ciclogenase-2 é, a este respeito, paradigmático -- um verdadeiro case study -- pelas suas implicações éticas e científicas.

27-1-2005 A.J. Barros Veloso
http://afilosofia.no.sapo.pt/10nprobleticosEut.htm

Igualmente interessante é o caso recente de um ensaio de fase III de um anti-angiogénico cujos resultados favoráveis foram comunicados aos accionistas do laboratório promotor antes de serem divulgados e discutidos pela comunidade científica. E não quero igualmente deixar de fazer uma breve referência a um caso mais antigo, o do Interferon: face às exageradas expectativas iniciais e que não se cumpriram, é minha convicção de que tudo o que se passou depois continua a ser uma história mal contada em que se movimentaram grandes interesses financeiros e que terá um dia de ser reformulada.

Tudo isto tem a ver com investigação, ciência e progresso científico. Tudo isto é um “escrever-direito-por-linhas-tortas” que sempre acompanhou o avanço do conhecimento. Mas, por de trás disto tudo, existe uma outra dimensão essencial da investigação médica que constitui, tanto ou mais do que qualquer outra, motivo de orgulho para a nossa civilização: refiro-me à dimensão ética. É preciso reconhecer que nem sempre foi assim. Mas nas últimas décadas assistiu-se a uma tremenda evolução que trouxe para primeiro plano preocupações que têm a ver com o respeito de cada um pela dignidade e integridade da pessoa humana.

Nos meus tempos de estudante da Faculdade era-nos transmitida uma visão judaico-cristã segundo a qual o comportamento médico deveria reger-se por um conjunto de regras morais que nos eram impostas e teriam de ser aceites por todos. Nessa altura não havia grande espaço para a reflexão de cada um sobre o comportamento mais adequado em relação ao outro. Havia apenas que cumprir à risca o que estava escrito.

Mas quando no fim da segunda Grande Guerra se destapou a tampa do nazismo tudo iria modificar-se. A humanidade civilizada foi então sobressaltada por terríveis descobertas de total desrespeito pela dignidade e integridade da pessoa humana, muitas delas situadas dentro da área médica e envolvendo as mais horríveis experiências “científicas”, num completo desprezo pelo Julgamento de Hipócrates. Estes eram os casos extremos. Mas outros, igualmente preocupantes, iriam ser descobertos, como por exemplo as experiências em sifilíticos internados em prisões dos E.U.A.

Deve recordar-se que na primeira metade do século XX havia ainda uma generalizada cultura de facilitação que levava a fazer ensaios clínicos que hoje em dia seriam proscritos. É por isso aconselhável resistir à tentação de julgar a posteriori cientistas, fora do contexto dos valores e da cultura dominantes da sua época. Mas a partir dos anos 50 a ética passa a ter uma importância progressivamente maior, em consequência dos avanços científico-tecnológicos e da emergência de uma nova consciência dos direitos individuais e sociais.

(Palestra proferida na abertura do “IV Curso de Formação para Membros de Comissões de Ética” da Faculdade de Medicina de Lisboa)

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