Dos 17 milhões de casos de
oncocercose registrados no mundo, 99% ocorrem na África, de acordo com dados da
Organização Mundial de Saúde. Como esta doença, verificada pela primeira vez em
Gana em 1875, chegou ao Brasil?
http://www.fiocruz.br/ccs/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=935&sid=12
Por que existem casos de
oncocercose em Goiás, a mais de dois mil quilômetros de distância do foco
original, em território ianomami? O que explica que, no Brasil, a doença
considerada a segunda causa infecciosa de cegueira no mundo não manifeste este
sintoma? Estas e outras perguntas são esclarecidas por Marilza Herzog,
pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz e especialista na dispersão da
oncocercose no Brasil. Entomologista por formação, Marilza estudou a princípio
os vetores da oncocercose, mas ultrapassou os limites da biologia e hoje domina
a doença de forma integral, nos seus aspectos médicos, epidemiológicos,
históricos e culturais.
Quando alojada no homem, seu hospedeiro definitivo, a Onchocerca
volvulus se enovela entorno de si mesma formando nódulos sob a pele
A oncocercose é uma parasitose
causada pelo verme Onchocerca volvulus, transmitido para o homem na
forma de larva através da picada de insetos do gênero Simulium, popularmente
conhecidos como borrachudos. No corpo do homem, seu hospedeiro definitivo, as
larvas do parasita se desenvolvem formando adultos que podem chegar a
aproximadamente cinco centímetros no caso dos machos e a até 80 cm no caso das
fêmeas, que se alojam sob a pele enoveladas em torno de si mesmas formando
nódulos. Os machos podem circular pelo corpo do hospedeiro, migrando de nódulo
em nódulo para fecundar as fêmeas, capazes de gerar até 3.800 larvas por dia. A
oncocercose não é letal e os nódulos em si não causam prejuízo à saúde. Os
danos causados à pele, como a gerodermite, que consiste na perda de
elasticidade do tecido, têm origem na reação imunológica às larvas que circulam
no corpo.
O agravo mais sério causado
pela oncocercose é a cegueira, que surge da reação inflamatória provocada pela
morte das larvas de O. volvulus nos olhos. "A cegueira não é comum
no Brasil porque aqui a carga parasitária dos pacientes é muito mais baixa do
que entre os pacientes africanos", esclarece Marilza. "No Brasil, o
sintoma mais comum da doença é a coceira intensa". Estima-se que na África
existam 270 mil pessoas com cegueira irreversível e 500 mil com graves perdas
de visão causadas pela oncocercose. Diversas áreas agrícolas foram abandonadas
em regiões ribeirinhas de países sub-saarianos, onde a doença forma área
endêmica, devido ao temor da população. A concentração em áreas próximas a rios,
que são o habitat preferencial dos vetores da doença, rendeu à oncocercose o
nome popular de cegueira dos rios.
O primeiro registro da oncocercose ocorreu em
1875, quando pacientes em Gana, na África, foram diagnosticados com o que na
época era chamado de forma genérica como craw-craw, nome dado a qualquer
lesão crônica na pele. Erroneamente, a doença era considerada uma escabiose,
que é uma infecção cutânea causada por ácaros comumente, chamada de sarna. Só
em 1883 foram encontrados os primeiros exemplares adultos de O. volvulus,
e os cientistas, então, definiram que aquela era uma doença nova. Apesar de
provocar casos numerosos na África, a oncocercose começou a despertar
preocupação quando na década de 1910 foram registrados os primeiros casos no continente
americano; primeiro na Guatemala, e em seguida no México, Colômbia, Venezuela,
Equador e Brasil; além de apresentar casos isolados no Iêmen, na Península
Arábica. A sistematização das características e dos sintomas da doença só foi
definida em 1953, na primeira reunião do Comitê de Experts em Oncocercose da
Organização Mundial da Saúde.
O primeiro caso da doença foi
registrado no Brasil em 1967. "Era uma criança, filha de um casal que
havia morado no território ianomami, em Roraima, na fronteira com a
Venezuela", relata Marilza. "A partir deste caso inicial surgiu a
suspeita de que poderiam existir outras ocorrências naquela região, o que foi
confirmado posteriormente". Os estudos sistemáticos da oncocercose no país
começaram em 1974 e verificaram a condição endêmica da região amazônica. Em
1986 foi descoberto o primeiro caso da doença fora do território ianomami: uma
jovem da cidade de Minaçu (GO), que nunca havia estado na área endêmica.
Como a pesquisadora esclarece,
a teoria mais aceita para o surgimento da doença no Brasil indica que a
oncocercose foi trazida por escravos africanos. "Exames do DNA das
espécies de O. volvulus encontradas nos continentes africano e americano,
realizados na década de 1990, indicam que a hipótese mais viável é a da
importação da doença através do tráfico de escravos", observa Marilza.
"Apesar do isolamento dos ianomami, houve penetração colonial espanhola na
bacia do Alto Orinoco, principalmente com vistas à extração de ouro. A relação
cordial dos índios com os escravos africanos que trabalhavam no garimpo é uma
hipótese para explicar porque os ianomami, um grupo praticamente isolado, teria
contraído a doença. Acredita-se que alguns escravos já estariam infectados
antes de serem retirados da África e que teriam funcionado como reservatório
para transmissão da O. volvulus aos índios porque os locais de garimpo,
que são os leitos dos rios, são criadouros das espécies de simulídeos capazes
de transmitir o verme causador da oncocercose".
Em vermelho, regiões endêmicas da
oncocercose, onde estima-se que vivam 120 milhões de pessoas
Apesar de haverem recebido
escravos durante o período colonial e de apresentarem diversas espécies dos
simulídeos vetores da doença, os estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de
Janeiro e Bahia não apresentam casos de oncocercose. "As rotas de tráfico
de escravos para o Brasil provinham de Angola e Moçambique, onde a carga
parasitária dos pacientes de oncocercose era baixa", observa Marilza.
"Além disso, nas regiões de Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Rio de
Janeiro, que recebiam muitos escravos, a capacidade de transmissão dos
simulídeos da fauna local é baixa. Já as rotas de tráfico caribenhas,
holandeses e francesas, que correspondem aos escravos levados para o garimpo no
território ianomami, tinham origem na África Ocidental, onde a doença era mais
severa e apresentava carga parasitária alta". A pesquisadora lembra que,
apesar de serem considerados peças caras do mercado e passarem por rigorosa
seleção médica antes de vendidos, os escravos infectados com oncocercose muitas
vezes não apresentavam sintomas evidentes, já que a doença tem evolução crônica
e lenta.
Para a origem dos casos da doença no
Centro-oeste do país, a teoria mais aceita é de que garimpeiros que adquiriram
a doença em território ianomami durante invasões ilegais da área indígena
migraram para a região de Goiás disseminando a doença. Isso só foi possível
porque lá existem mosquitos do gênero dos simulídeos, capazes de transmitir a
oncocercose. Recentemente, 12 pessoas estavam infectadas por O. volvulus
na região. Como a pesquisadora explica, a formação de novos focos da doença no
país é difícil. "Para que aconteça a dispersão da doença não basta que
exista uma só pessoa infectada e simulídeos. Para o surgimento de um novo foco
é necessária a existência de um grupo de pessoas infectadas, com carga
parasitária significativa em conjunto com uma população de vetores com boa
capacidade de transmissão. Caso contrário, não existirão larvas circulantes no
corpo do doente suficientes para infectar o vetor e assim transmitir a
doença".
O tratamento da oncocercose é
realizado desde os anos 1980 com ivermectina, medicamento que inibe a produção
de novas larvas ou microfilárias. Como a média de vida dos adultos é de nove a
12 anos, este é o período indicado para a duração do ciclo de tratamento, em
duas doses anuais. A ivermectina é a base dos programas de erradicação da
doença na África e Américas, que conseguiram reduzir substancialmente os casos
da doença.
No entanto, além de ser
ineficaz contra os parasitas adultos, a ivermectina não pode ser usada por
gestantes, lactantes, crianças abaixo dos cinco anos de idade, pacientes com
peso inferior a 15 Kg ou com complicações neurológicas. Atualmente, pesquisas
investigam a ação da amorcazina, um remédio que seria eficaz também no combate
dos vermes adultos. Ao mesmo tempo, investiga-se formas de bloquear com o uso
de antibióticos a atividade de uma bactéria simbionte da O.volvulus, a
Wolbachia, o que impediria a atividade do parasita infectante.
Setembro/2004
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