segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Crianças gritavam 'mãe', e os pais estavam mortos", diz brasileiro voluntário na luta contra o Ebola





Depois de fazer um recorde de vítimas em nove meses, a expansão do vírus no oeste da África é agora combatida por uma frente que vai da OMS e do FMI a Bill Gates

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Números dão a dimensão do sentimento de impotência que vai se consolidando em relação ao ebola, disseminado por países como Guiné, Libéria, Serra Leoa e Nigéria. Considerada a pior desde a identificação do vírus, em 1976, a atual epidemia de ebola deixou 2.218 mortos entre 4.366 casos nos três primeiros países, e os quatro mais afetados devem ter prejuízo superior a US$ 130 milhões em suas economias.
A comunidade internacional estuda a aplicação de medicamentos experimentais. A Fundação Bill e Melinda Gates vai contribir com US$ 50 milhões na busca de tratamentos e vacinas. A Cruz Vermelha planeja capacitar 2 mil voluntários. O FMI prevê redução em 3% do crescimento econômico de Serra Leoa.
A Comissão Europeia organizará, na segunda-feira, reunião com especialistas e ministros. Já anunciou o desbloqueio de 140 milhões de euros para reforçar os serviços de saúde nos países afetados. Enfim, a situação é desesperadora. Apenas na Libéria, morreram 1.137 pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A porta-voz da OMS, Sophie Jan, não deixa por menos. Reconhece estar "aterrorizada".
O médico intensivista brasileiro Maurício Ferri, que esteve em Serra Leoa (leia entrevista abaixo) cogita o uso de medicamentos experimentais e traça um perfil dramático do país africano.
— Há vários tratamentos experimentais, incluindo vacinas, que foram cogitados e discutidos. Discute-se até se é ético ou não fazer esses usos. Tenta-se mapear e entender onde cada um desses tratamentos pode ser aplicado, a disponibilidade e para quando. Há algumas drogas em diferentes fases de experiência. Dependendo da fase em que estão, não sabemos a eficácia e a segurança — diz.
— Apesar da calamidade na África, os princípios básicos de uso nos pacientes prevalece. É importantíssimo, mas é preciso achar um meio termo para a aplicação. Especificamente em Serra Leoa, cerca de 500 pessoas morreram, e se estima o crescimento no número de vítimas.
Ministro liberiano vê ameaça à nação
As autoridades anunciaram um confinamento a domicílio de 6 milhões de pessoas, por 72 horas, a partir de 19 de setembro, por 72 horas. A taxa de crescimento do país deverá cair de 11,3% para 7%.
— A preocupação não é nem que o vírus ultrapasse as fronteiras africanas. O que preocupa mesmo é a emergência de saúde pública, o aspecto médico dessa calamidade. É uma emergência humanitária, isso é o que me preocupa mais. Tudo se agrava porque a população tem dificuldade de acesso a serviços básicos. A situação da saúde nesses países, independentemente do ebola, é bem precária em termos de serviço de saúde — afirma o brasileiro.
Ferri admite que "há um extremo estresse em razão desse surto de volume nunca visto em termos de ebola".
– O sistema de saúde em Serra Leoa é próximo ou até abaixo do mínimo. As pessoas costumam chegar ao hospital já bem doentes. Há muitas mortes, até de profissionais. Por isso, há sobrecarga no trabalho e muito estresse.
Na terça-feira, o ministro da Defesa da Libéria, Brownie Samukai, declarou, na ONU, que seu país "enfrenta séria ameaça à existência". Comparou a propagação da doença a "um incêndio fora de controle, devorando tudo". Em Guiné, o Banco Mundial prevê recuo do crescimento econômico de 4,5% a 3,5%.
ENTREVISTA
O médico intensivista Maurício Ferri, 39 anos, brasileiro de Maringá (PR), atuou por três meses como voluntário numa missão comparável a uma guerra: a que tenta conter o ebola. De New Jersey (EUA), ele falou por telefone a Zero Hora:
Como foi a seleção para o senhor ir a essa missão?
Fui como voluntário, em julho. A OMS enviou e-mails a intensivistas da América do Norte. Tentava recrutar para atender em Kenema (Serra Leoa), por causa do ebola. Me interessei.
Qual foi sua motivação? Não teve medo de contágio?
Tive motivação puramente humanitária. É uma tragédia humana, emergência médica. Não é o melhor emprego do mundo. Apesar do medo de pegar ebola, costumo trabalhar em situações estressantes, com doenças infecciosas de alta periculosidade. Sabia que tinha um trabalho importante a fazer e que, seguindo as orientações, bem protegido, não teria problemas. Lá, sempre me senti seguro quanto ao nosso controle de infecção hospitalar. O alto grau de infecções de profissionais de saúde faz com que fiquemos focados. É prevenção. Isso exige treinamento e experiência em lidar com situações de risco. Mas os intensivistas que conheço têm condições de trabalhar num ambiente desses. Tomamos vacinas como a da febre amarela e da malária.
E a preparação emocional?
Talvez seja a parte mais difícil. É uma operação de guerra, dia a dia, os médicos, a logística, a mobilização.
Quanto tempo ficou lá?
Minha missão era de três semanas em Kenema. Fiquei metade do tempo, porque fui também para Genebra, onde ajudei em outros aspectos. Além de terapia intensiva, tenho treinamento em pesquisas de serviços de saúde e em metodologia científica. Participo do esforço para levantar dados sobre o ebola.
Pretende voltar?
Tenho a intenção, mas quem decide é a OMS. Quero voltar para lá no final de setembro ou no início de outubro.
Que experiência lhe tocou mais forte?
A gente vivencia lá as necessidades extremas que a população passa e o estresse adicional que o ebola causa, com dificuldades de acesso a serviços básicos. As histórias positivas marcam mais, diante de tanto sofrimento.
Algum caso específico?
Houve um menino que mostrou que a vida continua nessa calamidade toda, que vale lutar contra o surto. Ele se divertia empurrando um pneu de caminhão de um lado para o outro, tentando retomar a vida depois de se recuperar. Na segunda semana, começou a comer, a ficar mais esperto. Quando estava melhor, durante dois, três dias, ficou empurrando o pneu, sozinho, pela área de isolamento. Isso me emocionou, porque mostrou que a vida continua.
Qual é a importância desse tipo de missão em sua profissão?
Quando estou no contato com cada paciente, na UTI, emprego os mesmos foco e conhecimento. A necessidade lá parece maior, mas a experiência com cada paciente é semelhante.
E a roupa que o senhor usava para proteção?
Era grande e quente, ficávamos horas com as roupas, que cobriam o corpo todo. Chegava a mais de 40ºC. Ao sair da área de isolamento, às vezes eu tirava um litro de suor de cada bota. Tínhamos de nos reidratar, comer para voltar à enfermaria. Ficávamos entre três horas e meia e quatro horas pela manhã e voltávamos à tarde, para mais três horas e meia, quatro horas. Raramente fiquei mais que isso.
Em meio ao pesadelo, o senhor pensava em voltar?
Não. No momento em que você entra na enfermaria, fica tão focado na sequência de atividades que não pensa em outras coisas. Preparávamos medicação, levávamos comida, levávamos água. Não tínhamos tempo para pensar. Só chegava um momento em que cansava. Aí, você saía, até para evitar um problema maior de desidratação ou aquecimento do corpo. Mas raramente isso ocorria. Descansávamos, almoçávamos e voltávamos. A contaminação de quem trabalha no combate ao ebola ocorre por fatores como controle hospitalar inadequado ou estar no lugar errado. O ebola é implacável com pequenos erros.
E a parceria com os outros médicos?
A gente jantava junto, ia para o hotel, voltava ao hospital. O time ficava coeso. Na maior parte do tempo, meus companheiros foram uma escocesa e um inglês. Dividíamos as situações que tínhamos vivido no dia. Havia relatório diário, levado para Genebra. Conferíamos os equipamentos uns dos outros. Normalmente, no trabalho, estávamos separados, porque a enfermaria tinha três seções, e cada um ficava em uma. Às vezes, era importante a ajuda mútua, quando o paciente estava confuso, uma criança se debatia, era difícil pegar a veia.
Como era com as crianças?
Havia crianças de colo, pré-adolescente, adolescentes. Vimos muita criança morrer. Estimo que metade das que a gente viu lá morreu. O contato com as crianças, para quem não está acostumado, é difícil. Nenhum de nós é pediatra ou tinha experiência de lidar com crianças em estado grave. Isso mexe. Você via crianças gritando "mãe", "mãe", e os pais estavam mortos. Mas estávamos muito focados, não dava para divagar.
Pacientes ficavam carentes?
As pessoas já são muito carentes lá. Precisavam de apoio. Fazíamos o máximo até terem alta, e, então, íamos para o próximo. Em média, tínhamos 40 ou 50 pacientes. Acho que esse número explodiu. Entravam sete ou oito por dia, uns a gente não via, porque morriam antes.
Onde ficava essa enfermaria?
Era na área do hospital, mas separada por causa do ebola, um anexo, área de isolamento.
O vírus vive depois que a pessoa morre?
O contato com o morto, durante o velório, é muito próximo, eles não usam caixão. Os mortos são enroladas em panos para o enterro. Entre 15% e 20% das pessoas que mantêm contato com um morto com ebola o contraem.

Imagem: Foto: T. Jasarevic, World Health Organization

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