sexta-feira, 30 de abril de 2010

A memória manipulada e o país que se esqueceu. Jorge L. Borges conta o caso de um homem atormentado por se lembrar de tudo.


O professor Iván Izquierdo, de 59 anos, é hoje um dos mais respeitados cientistas em atividade no Brasil. Suas pesquisas sobre os mecanismos da memória são referência obrigatória em todo o mundo para estudos de ponta sobre as funções cerebrais humanas.

Fonte: http://www.estado.estadao.com.br/
edicao/especial/ciencia/cérebro

No Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o professor desenvolve um minucioso trabalho de reconhecimento anatômico dos processos relacionados à memorização.

Ao mesmo tempo, permite-se utilizar das descobertas científicas para refletir sobre a maneira de pensar de nosso povo e de nossas autoridades. O professor alerta para a perda da memória histórica do país e para as mentiras que, repetidas mil vezes, tornam-se verdades. Izquierdo concedeu a seguinte entrevista ao Jornal Estado de São Paulo:

Estado: Quais são os maiores avanços recentes no estudo da memória?
Izquierdo: Posso começar dizendo que um grande passo foi a demonstração das áreas cerebrais envolvidas na memória de trabalho ou memória rápida (segundos), aquela que permite o processamento "on line" de todo tipo de informação: o córtex pre-frontal e suas conexões. A seguir, a demonstração das áreas cuja função é a formação e armazenamento inicial das memórias de fatos e eventos (memórias declarativas): o hipocampo e suas conexões.

Deve-se ressaltar a descoberta da cadeia de mecanismos bioquímicos que interagem nesses processos. Destaca-se ainda a demonstração de setores envolvidos na memória de procedimentos (nadar, correr, tocar um instrumento): as regiões subcorticais e o cerebelo.

Não se pode esquecer da importância da demonstração dos sistemas regulatórios da formação e evocação de memórias por vias nervosas e sistemas neurohumorais envolvidos nos afetos e nas emoções, inclusive a ansiedade e o estresse. Nessa área, seria válido destacar também o efeito neurotóxico do estresse repetido e continuado.

Estado: O que afinal é a memória? Qual seu papel na estruturação da mente e da consciência?
Izquierdo: Tudo no cérebro funciona através da memória. Caminhamos, falamos e nos comunicamos porque nos lembramos de como fazê-lo. O cérebro manda secretar um ou outro neurotransmissor ou hormônio quando estamos tristes ou alegres, ou quando sentimos medo ou prazer, porque se recorda como fazê-lo. O cérebro mandar secretar hormônio de crescimento à noite e ativa a suprarrenal de manhã porque se lembra de que tem de fazê-lo. Por outro lado, a memória determina nossa individualidade como pessoas e como povos: eu sou quem sou porque me recordo de quem sou. A França é a França porque se lembra de ser a França. Se eu esquecesse quem sou, não seria ninguém, ou seria outro. O povo judaico é um exemplo fantástico disso: sobrevive, mantém sua individualidade, e até prospera, devido exclusivamente a sua memória e ao culto dessa memória.

Estado: Existe, então, uma memória transmitida de geração para geração?
Izquierdo: Impossível saber. A esse respeito só há conjecturas, não evidência científica. É bom lembrar que o cérebro funciona por meio de vias e conexões muito detalhadas e específicas, não por fantasmagorias ou crenças. Até as superstições atuam através de vias e redes nervosas.

Estado: Pode-se criar no cérebro de um cidadão ou de uma comunidade uma memória de fatos não acontecidos? Quais os perigos desse tipo de manipulação?
Izquierdo: A história do Brasil que se ensina nos colégios (ilha de tranquilidade, país manso, tolerante e benévolo, sem preconceitos e sem violência) é justamente um conjunto de memórias de fatos inexistentes. O perigo é cotidiano e visível: é esse Brasil dos massacres, da desigualdade, da prostituição infantil, dos assaltos, da inconsequência política, do trabalho escravo, da impunidade, do faz-de conta. Condicionadas pela falsa História que aprendem e ensinam, nossas elites costumam imaginar que tudo isso acontece na Índia, não na porta de casa. Ou dentro dela.

Estado: Por que nos lembramos mais nitidamente dos fatos acontecidos na infância e na juventude?
Izquierdo: Todos idealizamos os fatos acontecidos na infância e na juventude, principalmente ao atingir a velhice, e damos a eles mais importância que às coisas mais recentes. Na infância e na juventude, namorávamos, dançávamos com garbo, tínhamos ilusões, tínhamos vários futuros possíveis, jogávamos bola com mais agilidade, a expectativa de vida era longa. Há um ditado espanho que diz "todo tiempo pasado fue mejor". Para as pessoas, especialmente para os velhos, que sabem que o fim está próximo e para quem o contracheque da aposentadoria, a artrite, o câncer, a hipertensão ou a depressão fazem parte da memória de hoje, é mais agradável lembrar das coisas "daquele tempo", que real ou imaginariamente foi tão doce.

Estado: Por que, por vezes, nos esquecemos de detalhes de situações violentas ou simplesmente embaraçosas?
Izquierdo: Esquecemos (ou, aliás, suprimimos a evocação de) coisas embaraçosas ou ruins provavelmente pela intervenção de vias serotoninérgicas ou outras agindo sobre áreas cerebrais vinculadas com a memória (amígdala, hipocampo, córtex pre-frontal), ou com aspectos emocionais de sua evocação. Na depressão, que é uma doença que envolve uma disfunção dessas vias, só lembramos das coisas ruins, embaraçosas ou trágicas.

Estado: Jorge L. Borges conta o caso de um homem atormentado por se lembrar de tudo. Uma carga impossível de suportar. É necessário, de fato, limpar nossos arquivos para nova fase de aprendizado ou de adaptação? O que determina o esquecimento da conversa com a empregada de manhã e a manutenção de todos os detalhes da cerimônia de casamento da filha?
Izquierdo: Achados recentes indicam que Borges tinha, como sempre, razão e que um "Funes, o Memorioso" é, de fato, inconcebível. Os mecanismos de memória, contrariamente ao que se pensava alguns anos atrás, se saturam. Não no referente a conexões sinápticas, senão em razão da saturação de vários dos processos bioquímicos desencadeados pela formação ou evocação de memórias em populações grandes dessas células, por exemplo no hipocampo. Assim, não é necessário limpar os arquivos para formar novas memórias, mas é bom lhes dar um descanso de vez em quando. Vale dizer que determinadas memórias, de acontecimentos importantes e com maior carga emocional, são realmente lembradas mais facilmente e com mais nitidez que outras corriqueiras. Isso ocorre justamente por causa da importância do fato e da carga emocional. Nesse caso, são estimulados mecanismos neuroquímicos que garantem a memorização.

Estado: Por que as amnésias são geralmente ligadas à memória declarativa (fatos, eventos, coisas) e não à que rege os procedimentos?
Izquierdo: Porque as áreas lesadas nas amnésias humanas, como na doença de Alzheimer, na derivada do alcoolismo crônico, na resultante de microenfartes cerebrais e na doença de Parkinson, são justamente aquelas responsáveis pelas memórias declarativas: hipocampo, regiões corticais vizinhas, entre outras. A amnésia de Parkinson se deve a lesões dessas áreas, não a lesões de áreas envolvidas com tônus muscular e com movimento. As lesões amnésicas das regiões da memória de procedimentos são muito raras.

Estado: Um homem sem memória perderia também seus conceitos de ética?
Izquierdo: Certamente perderia. Veja o que acontece na rua no dia-a-dia do Brasil, país sem memória. A fidelidade às pessoas, às idéias, aos princípios, não existe. Roubar, é bom se não te descobrem, mata-se por matar. Pergunte a qualquer um sobre o deputado em quem votou na última eleição: você se importa se seu deputado rouba? você não gostaria de roubar também, se fosse possível?

Estado: Há situações em que lesões cerebrais impedem uma pessoa de se emocionar?
Izquierdo: Sim. Há síndromes cerebrais (lesão bilateral do núcleo amigdalino, entre outras) em que o indivíduo não reage nem quando se lembra de situações ligadas à emoção.

Estado: Qual a esperança para pessoas afetadas por doenças que afetam a memória, como Parkinson?
Izquierdo: A esperança para o Parkinson, o Alzheimer, e todas as demais doenças degenerativas cerebrais com morte neuronal está, hoje, na possibilidade de desenvolvimento dos tratamentos preventivos. Para poder desenvolvê-lo, é preciso avançar mais no conhecimento básico dos mecanismos moleculares dessas patologias. Por enquanto, existem poucas drogas preventivas dessas doenças que sejam realmente úteis. A nicotina é uma, mas seus efeitos secundários são grandes. Os agentes que diminuem os radicais livres talvez tenham algum efeito, mas faltam conhecimentos básicos sobre seu mecanismo de ação e estudos epistemológicos sobre seu uso. Não há, no momento, tratamento algum que consiga recuperar a função de áreas cerebrais em que morrem neurônios: estes são células que não se reproduzem e quando morrem levam toda a informação que continham.
Existem drogas, o tacrinal, por exemplo, com efeito paliativo sobre o quadro amnésico dos pacientes com doenças degenerativas cerebrais. No caso do Parkinson, evidentemente, a terapêutica de base da doença (como ocorre na depressão) corrige em parte o quadro amnésico que a acompanha. Não há, de momento, nenhuma droga que "melhore a memória", somente algumas que estimulam a atenção, melhoram o sono ou diminuem a sensação de fadiga. Nenhuma delas, no entanto, traz benefícios efetivos à memória, e todas possuem efeitos secundários potencialmente graves.

Imagem: blog.antesdeparis.com.br/category/frases



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