terça-feira, 20 de julho de 2010

A vida não acaba aos 65 anos e a medicina sabe disso


O (pre)conceito da idade está a desaparecer. Ter um potencial problema oncológico mais tarde não é uma sentença de morte, defendem os especialistas. Mas ainda é preciso mudar mentalidades para que uma pessoa com 65 anos não seja tratada de forma diferente de uma de 40

Por Romana Borja-Santos, em Barcelona
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Há uma idade certa para morrer? A medula óssea de António Bento pregou-lhe uma partida há três anos. Deixou de produzir normalmente algumas células do sangue. Tinha aquilo a que se chama uma mielodisplasia - que se manifestou através de uma anemia que em pouco tempo lhe tirou todas as forças. Tinha 68 anos. Estava três anos acima da barreira dos 65 anos e já era socialmente etiquetado como um idoso.

Mas António decidiu que ainda não era hora de o tic-tac do relógio parar e que não queria deixar de aproveitar o sol de Portimão (Algarve), onde vive. Rejeitou a frase feita de que a partir de certa idade se tem de morrer de alguma coisa e arriscou lutar. "Gosto muito da vida e de brincar e felizmente os médicos compreenderam-me e apoiaram-me ao máximo. Depois, foi só entregar-me nas mãos deles", contou ao P2.

Segundo a Coligação Europeia de Doentes de Cancro, em 2030 cerca de um terço da população terá 65 ou mais anos e 60 por cento das doenças oncológicas ou pré-oncológicas acontecem depois desta idade, sendo que se espera que nos próximos 20 anos esta percentagem cresça para 70 por cento. Contudo, é precisamente nesta faixa etária que tem sido mais difícil tratar os doentes. A quimioterapia ou alguns fármacos agressivos trouxeram más experiências no passado e levaram muitos médicos a ter medo de perder os doentes nos tratamentos. Uma realidade que já está lentamente a mudar. "Estão os pacientes mais velhos a receber os tratamentos que merecem?" Esta foi a pergunta que serviu de mote a um debate no congresso da Associação Europeia de Hematologia, em Barcelona.

O objectivo foi sensibilizar médicos e indústria farmacêutica para a importância de se investir em alternativas terapêuticas, o que passa por fazer mais ensaios clínicos para que se conheçam novas moléculas e o seu potencial nestas idades. Na área das mielodisplasias (12 vezes mais comuns na população mais velha e que na maioria dos casos evoluem para leucemias agudas) e de algumas doenças malignas do sangue já se deram os primeiros passos. Em Portugal, são detectados cerca de 400 novos casos de mielodisplasias por ano e o objectivo é que não evoluam para casos oncológicos como leucemia, explica António Almeida, hematologista do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. Anemia, cansaço, hemorragias e pele pálida são alguns dos sinais mais comuns.

Cronologia vs. biologia

Mas afinal o que é a idade? É um factor cronológico ou biológico? É uma mistura de ambos. A data de nascimento no B.I. não se pode apagar, mas pode ser agravada ou melhorada consoante as outras patologias do doente, defendeu Gordon McVie, do Instituto Europeu de Oncologia e um dos oradores no congresso. O especialista disse ao P2 que falta formação para que os médicos aprendam a lidar com as diferentes idades. E deu um exemplo: "Tenho 65 anos e receio que, se me fosse agora diagnosticada uma mielodisplasia ou um cancro, talvez não fosse alvo do mesmo investimento que aos 40 anos. Vejam a subjectividade: nos países da União Europeia já estou acima da idade limite para um transplante, mas nos Estados Unidos, se a minha condição geral for boa, já o posso fazer. A discriminação pela idade é tão grave como pelo sexo, ou pela cor da pele."

Mario Bocaddoro, director do Departamento de Oncologia do Hospital de S. Giovanni, em Torino (Itália), acredita que os motivos são também financeiros. "Quando temos de fazer opções, deixamos os doentes mais velhos de fora", admite. "É preciso que os políticos e os mais jovens percam a ideia de que os mais velhos já não são precisos para a sociedade."

Em média, Bocaddoro estima que os doentes incluídos nos ensaios tenham menos dez anos do que a média em que aparece a doença, o que também se justifica por, muitas vezes, serem pessoas com co-morbilidades, isto é, outras doenças que podem enviesar os resultados. Outro dos argumentos usados para tal acontecer é a ideia de que os doentes mais velhos não vão aguentar os tratamentos necessários para o ensaio. Daí que muitas vezes só recebam tratamento de suporte.

"Morrer de cancro ou com cancro é bem diferente e é preciso responder, caso a caso, se os pacientes estão em condições para tratamentos mais agressivos e garantir uma rede social de apoio", acrescentou Richard Sullivan, professor no King"s College, em Londres, que entende que a idade é "uma questão cultural e um problema geral na Medicina". "As doenças hematológicas, por afectarem tanto esta camada da população, estão a ser pioneiras a inverter o paradigma. Temos de evitar que a mielodisplasia evolua, mas também temos de estar preparados para uma neoplasia maligna [cancro]", disse.

Do lado dos doentes, Jan Geissler, director da Coligação Europeia de Doentes de Cancro, explicou que os movimentos dos pacientes se estão a voltar para os mais velhos, "até porque há grandes desigualdades no acesso aos tratamentos dentro da Europa". Jan Geissler disse que "alguns estudos mostram um padrão de tratamento muito mais relacionado com a idade do doente do que com a doença". Ainda assim, recordou o seu próprio caso quando em 2001, aos 28 anos, lhe diagnosticaram uma leucemia mielóide crónica, para mostrar que "a idade" é um problema geral na Medicina: "O médico não estava preparado para o facto de eu ter uma vida pela frente e foi difícil abordar a possibilidade de eu ficar infértil." Mas Jan casou e tem dois filhos.

Sobre o tratamento que teve em Portugal, António Bento só tem "maravilhas a dizer" do Hospital do Barlavento Algarvio. "Têm-me feito tudo o que podem para não avançar para leucemia e dizem-me que ainda vou cá andar uns bons anos." A experiência de António já está a ser regra no país, garantiu ao P2 a hematologista Maria João Costa, do Hospital de Santa Maria e professora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

"A ideia clássica do tratamento de uma neoplasia é a intenção de cura e esse tratamento pode incluir um cocktail de fármacos muito agressivos que pressupõe que as pessoas tenham capacidade para o aguentar. Os idosos, a priori, não têm capacidade e, até há pouco tempo, não conseguíamos fazer muito mais do que medidas de suporte e de conforto. Felizmente estão a surgir novos estudos e novos agentes terapêuticos que não pareciam muito interessantes na opção da cura mas que abriram um leque de hipóteses surpreendentemente úteis que já não nos obrigam a desistir do doente", explica. Um leque que significa "um aumento da quantidade de vida, mas sobretudo da qualidade".

Maria João Costa destacou "o grande esforço que tem sido feito nas mielodisplasias" e em outras patologias como a leucemia mieloblástica do idoso. "É uma caminhada na qualidade científica e já conseguimos duplicar a esperança de vida em muitos casos", contou, mas deixou um alerta para a importância de um diagnóstico atempado e de um acesso mais directo aos especialistas em Hematologia e em outras áreas. Para esta médica, ainda que o tratamento possa ser discutido com o doente, é ao clínico que cabe a responsabilidade final. "Leva muito tempo a fazer um médico", lembrou - em referência ao facto de cada doente ser único, pelo que um pequeno factor pode alterar completamente a terapêutica.

Mais apoio psicológico

Também Luzia Travado, directora da Sociedade Internacional de Psico-Oncologia e psicóloga clínica no Centro Hospitalar de Lisboa Central, contactada pelo P2 depois do encontro de Barcelona, sublinhou que "em Portugal existe uma grande determinação no tratamento dos doentes oncológicos e às vezes até se questiona é o oposto, ou seja, o "encarniçamento" terapêutico com doentes que deviam ir para cuidados paliativos". Sobre o acompanhamento psico-oncológico admitiu que só os grandes centros hospitalares estão a conseguir dar resposta, apesar de as recomendações europeias dizerem que deve ser "parte integrante e não acessória do tratamento".

António Almeida, do IPO de Lisboa, destacou igualmente que "os doentes que tradicionalmente são considerados idosos, e a quem qualquer investimento mais agressivo faria mais danos do que bem, agora podem ser tratados de uma forma mais agressiva e mais intensiva porque têm uma esperança de vida de mais 20 anos à sua frente".

O também professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa admitiu que "há sempre uma carga emocional muito forte nos doentes mais novos e que leva a um conceito errado de que a vida de um jovem vale mais do que a vida de um idoso. É uma mentalidade que tem de ser alterada porque uma pessoa de 40 anos tem mais 40 anos pela frente mas uma de 60 também tem 20 que são importantes." E destacou a importância de novas terapias, em especial na área da epigenética, que atacam a origem da doença. "Detectamos as alterações de expressão dos genes que são reversíveis e tentamos que regressem à normalidade. Hoje já não temos de matar as células, mas sim modulá-las para que fiquem normais."

Para os casos em que não se trava a mielodisplasia, António Almeida deixa uma mensagem: "Com cancro, a vida continua de outra maneira mas continua, mesmo com tratamentos mutilantes. A escolha é entre não ter vida ou ter uma vida diferente. Perguntem e vão ver como a maior parte das pessoas vai querer essa vida diferente."

O P2 viajou a convite da farmacêutica Celgene

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